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Agosto De Vinte e Sete

  • Augusto Zanardi Creppe
  • 2 de set. de 2024
  • 6 min de leitura

Ilustração: Ricardo Satoshi

Que segredos guardam estes corredores,

Paralisados na contagem das horas?

Por teus pisos passaram jovens, senhores;

Refletidos passos de damas, senhoras.

Tuas paredes, poltronas e ladrilhos,

Coloridos por sua vetusta idade,

São testemunhas de todos os teus filhos,

Que andam e andaram por ti, faculdade!


Fitando os teus imponentes quadros tortos,

Vozes ecoam, e num sussurro lento,

Ouço duras confissões de vivos mortos,

E sou obrigado a viajar no tempo.

Mas que escuto destas tristes personagens,

Em voz de amarescente arrependimento?

Contam deste Largo as suas iniquidades,

Sua vera história, plena de tormento:


Erguidos sobre território estrangeiro,

Teus muros te isolaram de onde nasceste;

Mas outro mundo em ti preservaram inteiro -

Um que tu criaste, não que conheceste.

Suposto lar da moral e da justiça,

Revolve quatro séculos a achar

Enfim, de tuas agruras a premissa,

E a entender a terra a que chamas de lar!


Tal qual onde foste fundada o planalto,

Entre águas malditas e tamanduás,

Levas nome sagrado, que para o alto

Eleva tua sangrenta trilha de paz.

Antes terra de rubras almas guardiã,

Usurpada foi pela tua alva ambição.

Converteste no Cristo o que era Tupã,

Mas realmente cumpriste tua missão?


Percebe os graves erros que te assinalo,

Enquanto o probo fado ainda não os vinga.

Lembra-te de quando não eras São Paulo,

Mas Vila dos Campos de Piratininga!

Pois posto que somente tenhas nascido

Quando a póvoa dois séculos já possuía,

Vieste de berço franciscano, benzido,

E desta cidade sempre foste guia.


Por ti percorreram ilustres figuras,

Pensadores, presidentes e poetas;

Donos de belas dicções e escrituras,

Mas quase sempre de verdade incompletas.

Lar pioneiro no ensino do Direito,

Que fizeste no espaço de tantos anos?

Foi a realidade ou foi o preconceito

Que ensinaste a teus filhos franciscanos?


Mas talvez para apontar seja tarde

As árduas desigualdades que te assombram;

Afinal, o sofrimento que te arde

São sombras que sobre ti não mais se encontram.

Vê o teu redor, mudaram-se os ofícios:

Teus rios se tornaram grises avenidas,

Baixas casas ergueram-se em edifícios -

Irreconhecíveis paulistanas vidas.


Mesmo ante a chegada destes novos ares,

Tuas estruturas transpiram os passados.

Em ti, reúnem-se gáudios e pesares,

Imortalizados em nomes dourados.

Ainda que, dentro de tuas salas, hoje,

Estejam símbolos de diversidade,

Tuas cátedras marcam o que sempre foste

E evidenciam a tua diversa idade.


Onde está, então, a tua glória pretérita

Que ao presente projeta tanto esplendor?

Seriam tuas palavras, a norma emérita

Que a todos irradia este lúzio fulgor?

Ou seria, pois, cada um dos capítulos

Desta tua paradoxal biografia?

O que explica, dentre os teus ilustres títulos,

O de “velha e sempre nova Academia”.


Deslumbrado diante desta imensidão

De pesados fatos e com sina imposta,

Pergunto aos teus fantasmas, mas sempre em vão,

E em mil dúvidas caio sem ter resposta.

Pergunto se eu, em meio a tantos talentos,

Terei nome eterno ou passagem discreta;

Serei sucessor de teus ensinamentos

Ou apenas mais um desvairado poeta?


Talvez jamais saiba o que a ti me liga,

Mas não consigo evitar te perscrutar.

Em teus corredores, onde quer que eu siga

Sinto a voz do tempo pairando no ar.

Tampouco a mim a dura faina compete

de explicar todos os teus fatos diversos

Desde aquele agosto de vinte e sete

Em apenas onze estrofes de oito versos!





Comentários - "Agosto de Vinte e Sete"

I. Andando pelos corredores da Faculdade, pode-se sentir o tempo passar mais devagar. Cada porta, cada piso, cada cadeira aparenta ter uma vida e uma história própria. Ainda, muitos desgastes do prédio nos revelam o passado vivo que é a Faculdade. Quantos alunos e alunas já não passaram por aqueles mesmos ladrilhos antes de nós? E, por nossas vidas serem assim tão efêmeras, as únicas testemunhas que restam de tudo isso são os objetos.


II. Sempre que olho os quadros das salas, imagino que eles tentem nos falar alguma coisa. Mas, creio que nem sempre essa mensagem seja positiva. Quantos deles não perpetuaram injustiças mesmo vestindo símbolos do direito (imponentes, mas tortos de ética)? Talvez seja essa a verdadeira história da Faculdade e o que eles queiram nos contar: um lugar que preserva tradições e que possui uma história repleta de amarguras.


III. As grossas paredes da Faculdade fazem do prédio histórico uma verdadeira muralha. Isso também não o faria ser um lugar isolado, cego de seu entorno? O próprio universo do Direito representa um mundo ideal, mas que, justamente por tentar se elevar, acaba se afastando da realidade e do seu verdadeiro propósito. No caso da Faculdade, não seria melhor encontrar a origem dessa injustiça? Então, teríamos que voltar quatrocentos anos para entendermos a história da terra sobre a qual ela está.


IV. O planalto de Piratininga, localizado entre os rios Anhangabaú (“rio dos males”) e Tamanduateí (“rio dos tamanduás”), sempre foi um local sagrado para os indígenas. Da mesma forma, os primeiros colonizadores deram um nome santo (São Paulo) ao seu assentamento. Nos seus primeiros anos, a vila de São Paulo foi alvo de diversos ataques por parte dos indígenas. Os brancos, então, dizimaram-nos e afirmaram seu domínio sob o nome da fé cristã, mas realmente conquistaram algo com isso?


V. Para entendermos a origem das desigualdades de São Paulo, temos então que lembrar esse momento inicial da colonização (quando a cidade se chamava “São Paulo dos Campos de Piratininga”), mesmo a época em que a faculdade ainda não existia. Afinal, ela foi instituída em um local já existente desde o século XVI, o convento de São Francisco. Por isso, podemos considerar a Faculdade como um guia - moral e político - da cidade antes mesmo de existir.

VI. Desde 1827, inúmeras personagens famosas estudaram na Faculdade; presidentes, políticos e poetas são algumas dessas figuras que sobressaem. Mas, apesar de terem escrito nobres textos, livros e discursos, muito da beleza jurídica que estudavam não refletia a realidade. Além disso, não há como esquecer o papel essencial da Faculdade de criar sucessores para liderarem as instituições brasileiras e manterem o status quo do país.


VII. Porém, tampouco seria correto apenas condenar a Faculdade por sua história - sobretudo, seria uma visão anacrônica. Há de se notar que São Paulo mudou muito desde 1827, e da mesma forma o fez a Faculdade. Aquela cidade uma vez pequena e agrária tornou-se metrópole industrial, de grandes prédios. O próprio entorno da Faculdade reflete isso, como a canalização do córrego do Anhangabaú para a construção da Avenida 23 de Maio. As vidas paulistanas, assim, ficaram irreconhecíveis.


VIII. Ainda assim, persiste na Faculdade essa dicotomia passado-presente. Novamente, referencio o prédio histórico como símbolo desse pretérito, que mantém homenagens a personagens polêmicas em nomes de salas e em placas douradas. Mesmo que, hoje, o alunato da Faculdade seja muito mais diverso, basta olhar para as salas (e à própria estrutura de ensino) para perceber o quão antiquada a Faculdade ainda permanece em alguns pontos.


IX. Diante disso, onde podemos encontrar a razão para o enaltecimento da história da Faculdade? Seria a sua parte positiva, isto é, as palavras de Direito e os seus belos princípios que ainda nos esclarecem os caminhos a serem trilhados? Ou seria, apenas, a sua impressionante história tão contraditória, tão rica de paradoxos? Isso explicaria, dentre inúmeras coisas, o porquê de nos referirmos à faculdade como a “velha e sempre nova Academia”.


X. Fico paralisado, extasiado diante desse universo de fatos que pesam sobre mim - como aluno, parte da Faculdade. Quando olho os quadros, imagino se eles também não me observam de volta; mas, como é tudo fruto de minha imaginação, continuo sem resposta para as minhas tantas perguntas. Terei um futuro de sucesso no Direito, assim como esses inúmeros nomes? Ou não estaria eu à altura dessa tarefa? Em outras palavras, estou no caminho certo em ser jurista ou sou apenas mais um poeta?


XI. Chego à conclusão de que possivelmente nunca entenderei o porquê de eu estar na Faculdade, mas independentemente disso, continuo fascinado por todos os seus cantos. Não há como não imaginar, ao passear por seus corredores, o que ali se passou durante tantos anos. Mesmo assim, não cabe a mim entender toda a sua história e nem resumi-la em um singelo poema de onze estrofes de oito versos.

Obs: Além de seu conteúdo, a forma deste poema também compõe uma analogia à São Francisco. A sua divisão em onze estrofes de oito versos, assim como a métrica adotada - versos hendecassílabos -, fazem referência à data de fundação da Faculdade (XI de Agosto) e, sobretudo, à força das tradições que lá são perpetuadas. O eu-lírico, ao tentar entender como se insere na narrativa da Faculdade, acaba por reproduzir involuntariamente um de seus mais icônicos símbolos.

2 Comments


Marcelo Creppe
Marcelo Creppe
Sep 03, 2024

Parabéns Augusto!!!

Lindo, amei !!!!

Adorei os comentários também!!!!

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Bella Cambi
Bella Cambi
Sep 02, 2024

Guto, um dos maiores poetas desta faculdadeeee! ♥️

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