Autobiografia Miserável
- Isabella Cambi
- 8 de set. de 2024
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O mundo é repleto de criaturas inesquecíveis. Gritam, pulam e vivem. Vivem demais, a todo instante e intensamente. Sabem se aproveitar do tempo e o usam a seu bel-conduzir. São agraciadas com mentes brilhantes, de rápidas respostas e reações imediatas. Saem quase todas as noites e estão prontas para ficarem assim, livres e soltas, esperando o próximo acontecer - que sempre chega. Falam com qualquer um, sem medo ou trejeito, pois todos são velhos ou novos conhecidos. Andam confiantes pelas ruas costumeiras e mais certeiras ainda por aquelas nunca pisadas. Como já dito, são existires inconfundíveis e memoráveis. Entretanto, não são os únicos. Há ainda outros, pequenos e apagados, quase invisíveis. Pessoas que apenas ocupam espaços. Também desejam o sabor da vida, mas o experimentam aprisionados em suas próprias cabeças. Vítimas de cômodos pequenos, prendem-se em si, meramente sendo e ansiando. Apercebem-se, muitas vezes, de sua insignificância, sentem então tristezas coerentes e aceitam, por fim, sua condição.
Cristina, jovem e mulher, sendo essas suas duas únicas características, era, como tantos outros, um ninguém, porém, naquela noite, se rebelaria.
Decidida a sair do quarto de hóspedes, colocou as mãos na maçaneta e sentiu o metal gelado arrepiar o corpo quente. Agora só precisava girar e empurrar o corpo para fora. Alguns passos e estaria na sala de estar, junto a toda família que ria e compartilhava memórias. Se sentaria perto dos pais e também riria de contos de outra época. Só precisava imprimir força nos dedos e girar, apenas isso.
Mas antes que pudesse fazê-lo, o gigantesco peso no peito venceu o corpo contrariado e ela deitou-se mais uma vez na cama aconchegante, voltando ao habitat natural. Desapontada e contente, decidiu tentar novamente em alguns minutos, dando-se instantes para recuperar as forças. A paz aos poucos retornou a si, era-se de novo, porém com uma pitada calorosa de doze anos e um momentinho de boneca nova. Ela estava muitíssimo bem ali - estática -, até precisar virar o corpo para reavivar o braço esquerdo dormente.
Ao lado da cama emprestada situava-se um espelho reto e sem graça. Mais cedo, ela havia cometido o erro de olhá-lo; a figura murcha mostrava um vazio profundo e 21 anos. Era como o gato preto em que tropeçou outro dia, definhado e escuro, quase não se podendo vê-lo na rua suja. Suas pupilas, de tanto esperar a morte que não vinha, já perdiam a cor, estavam ali porque a anatomia demandava que estivessem. Contudo, caso pudessem, teriam fugido. Encontrariam belas paisagens, infâncias adoráveis e verões ensolarados. Deixariam aqueles olhos imundos. Ignoravam, pelo bem de sua própria ilusão, que ficções como as desejadas não aceitariam coisas feias como eram. Para ver a felicidade, há de ser tão belo e vivo quanto. Por isso não ousava virar a cabeça naquela direção, ver-se em olhos de gato preto era assombroso.
Pelos menos sabia o futuro da criatura, três semanas depois, encontrou-a no chão, esmagada na noite escura. O cheiro da carne violada a fez vomitar por horas e, mesmo agora, a lembrança deixava-a tonta.
Enjoada, levantou-se da cama e abriu a janela. As estrelas brilhavam como pontinhos de sabão na roupa limpa, exatamente como nos ternos dele. Soubesse de tudo, caso fosse Antônio, também teria se livrado desta presença obscura que ela era. Nada sabia fazer senão tentar agradá-lo e nisso muito falhava. Desde a primeira vez em que seus olhos pousaram nele, seu corpo pressentiu algo a existir entre eles, o que a surpreendeu sobremaneira. De qual forma um homem formado e bem quisto a notaria, não compreendia, entretanto, cada partícula de si estava cheia de certezas.
Decorrido como decorreu, tudo o que previu transcorreu à perfeição. Os detalhes já não importavam mais, qualquer um conhece a história de uma tímida e seu galã impossível, porém o que faria agora com tanto amor guardado no peito sem lugar algum para enterrar atormentava-a - amor demais é caminho para o delírio. Sabia que o tempo curaria tudo, como nos filmes de romance secretamente adorados, mas o que se esconde é que no cinema o tempo é contado em meses, e a vida acontece em dias. Em uma grande sequência de pequenos fatos, a água vira vinho, o novo envelhece e um amor deixa de existir. Mesmo assim, naquele agora, seu coração tinha sede e ela apenas encontrava água salgada.
Sua primeira paixão como mulher não a fez menos menina do que o sangue a escorrer por entre suas pernas. Quando ninguém a olhava, ainda caminhava seguindo as linhas do rejunte do chão e irritava-se quando tropeçava. Sim, por um lado, sofria de um coração partido, por outro, cantava canções de ninar e se auto balançava à noite - poupando-se de crescer demais. Apesar disso, com perfeição vinha-lhe à memória o setembro - como tantos outros meses - em que estava cheia de vontades de viver, com fome de liberdades, e todos passavam por ela como se uma sombra no chão, indiferentes a enxergá-la. Perguntavam-na coisas como ''hoje vai chover?'', ''você comeu torradas de manhã?'', enquanto ela ansiava por discutir se mamãe morreu ontem ou hoje e onde terminava a esquina laranja - nada de grandioso ou de muito inteligente, contudo assuntos que nunca tivera a chance de discutir por ser invisível demais.
E então veio Antônio e deu-lhe umas miudezas de atenção única, emprestou um tanto de coragem e fez de sua vida menos sobrevivência cotidiana e mais novela. Conquanto sem querer, lembrava-se dele em tudo que via, talvez porque fosse tudo muito recente; talvez porque tivesse sido sua primeira paixão madura. Seu lado crescido agradecia-o pela chance de diminuir o buraco de desejo em si. Já o lado menina gostaria de esbofetear o rosto de barba mal feita. Eis a problemática, ambos pensavam nele. Precisava esquecê-lo de uma vez.
À beira de afogar-se em passado, a porta abriu-se. Paulinho, o irmão mais novo, entrava com uns biscoitos roubados da dispensa, adivinhando a fome alheia. Aquelas visitinhas recorrentes dele eram a alegria dela há muito tempo. Quase não conversavam, mas nos atos mostravam o quanto gostavam um do outro, sem contar que somente as íris verdes do menino eram capazes de compartilhar o cansaço de quando a família chamava-os de ''esquisitices''. Embora ele possuísse uma inteligência encantadora - entre as muitas habilidades, tocava o saxofone como gente adulta e emocionada - o que o colocava um pouco com os inesquecíveis, ele também apenas ocupava espaços.
Sentando-se lado a lado, comeram no silêncio dos olhares trocados e, ao sair do quarto - antes que a família notasse a breve ausência -, combinaram que ele tocaria a música favorita de ambos antes de dormir.
Só de pensar em ter filhos e passar a inutilidade presente em seu sangue adiante, sentia-se amedrontada, porém seu irmãozinho às vezes a fazia reconsiderar, haja vista o quanto adorava-o. Esses momentos pouco duravam. Mesmo em meio ao devaneio, lembrava-se de como uma mulher tudo podia fazer - de igual maneira aos homens -, menos livrar-se da condição feminina. Assim como não era alguém, seus filhos também não seriam e roubariam dela o pouco que gostava de si mesma. Seria obrigada a dizer adeus à ínfima emancipação que ganhara, ao corpo levantado, às horas de sono, aos próprios desejos e a tantas outras coisas, tudo para encaixar-se na posição de mãe. Uma galinha chocando seus ovos para que fosse comida num domingo uma vez que eles crescessem galos.
Pelo silêncio repentino do outro lado da porta, os pais pediram, como sempre, que Paulinho tocasse algo para os parentes, querendo exibi-lo como um troféu desenterrado de tempos em tempos - mal sabiam, esses de fora da família, o quanto o objeto recebia ameaças de ser jogado alhures. Paulatinamente, ''If I Should Lose You'' começou a soar e fez com que Cristina esquecesse-se do mundo de fora, Hank Mobley sempre a deixava feliz para além de si. Abrindo a janela o máximo possível e aproveitando a companhia dos astros, seus pés valsavam quase que sozinhos e conforme as batidas do coração. Os cabelos caíam do rabo de cavalo perfeito, o suor se acumulava nas axilas e na testa e ela libertava-se em dança e raiva. Raiva! A nova avalanche de sensações fez com que desejasse vingar-se de Antônio, comer o ovo da galinha magricela e roubar Paulo da família.
Desenrolando-se como um orangotango bravo, seus braços iam para cima e para baixo e ela girava piruetas sem sentido definido. Mentalmente, ainda gritava toda a hipocrisia familiar: desde o tio leitor de Neruda aos domingos e traidor da mulher durante a semana, até a prima médica que fechava os vidros do carro aos pedintes famintos. Todos, todos, todos hipócritas! E o mundo dizia-os incomparáveis, melhores que os demais por fingirem como ninguém!
Naquele instante, a irritação borbulhava no mesmo ritmo do instrumento forte. Como desejou ser vista ali! Por um momento foi inteira, viva e sentimental como os outros - os quais tanto exigiam de sua timidez só por ser tímida e recusavam o silêncio por não terem uma consciência eternamente inquieta -, o que pensariam eles se a vissem agora?! Pelas verdades que diria, seria respeitada…!
Cristina odiou todos até soado o último adeus da música, então esvaziou-se como de costume.
Enquanto a euforia fugia do peito e a família recolhia-se para dormir, ela notou a perdida chance de rebelião, não havia compartilhado risada alguma ou sequer saído do quarto, ficara presa em si novamente. A quietude formada ao seu redor era tão barulhenta quanto palavras silenciadas em um caixão, sabia que os não-ditos daquela noite perseguiriam sua língua por muito tempo. Tempo demais. Precisaria adotar uma dose ainda maior de silêncio ou tudo viria à tona quando menos esperasse, causando conflitos ameaçadores à sua convivência pacífica e quase despercebida.
À medida em que definhava com a consciência dos ocorreres noturnos, largou-se no chão. Então a vontade de abraço tomou conta da pele cansada - não um cansaço qualquer, mas sim aquele que reaviva a alma de suas necessidades de toque. Sozinha como era, as mãos quentes a envolverem seu corpo deixaram-na confortável no piso frio, a melancolia acolhia-a gentilmente. Malgrado a luz branca sob a cabeça como pequenas agulhas em seu crânio exausto, finalmente era chegado o alívio das almas desgastadas.
Depois, deitada há muito tempo, desejou morrer. Não clamava por estar morta, mas sim o simples ato de morrer: abandonar o corpo pesado e dormir livre de um porvir. Pudesse fazê-lo, hibernaria bons dias e então voltaria, renovada, pronta para não ser coisa nenhuma outra vez… Todos sempre a chamavam de Cristina, apenas Cristina, talvez porque o traço de ter um sobrenome desse-lhe exagerada personalidade e as oito letras de seu nome bastassem para o anonimato intrínseco a ela. Sequer tinha direito a um apelido, ao prazer de um nome diminuto. Era certo, quem se interessaria por alguém preso em quatro paredes? Incapaz de passos certos e conversas simples? Era completamente incompleta.
Olhando mais um pouco para dentro de si e ousando explorar seu próprio ser, chegou à conclusão de que sua existência interior era apenas aquilo - profunda. Não havia um espetáculo a ser descoberto ou um grande segredo, eram unicamente grandes amontoados de escuro seco e plano. Imaginou-se velha e enrugada, torcendo para que esse futuro, onde menos se tem de vida do que o vivido, exibisse algo de aventura. Seria tão feliz só de ter umas migalhinhas chamadas de suas, que não pudessem ser roubadas por um outro alguém, que existissem porque ela existia...
Chega! Enojou-se de si a esse ponto, a auto pena demonstrada era revoltante, podia não ser um alguém, contudo, ao menos o respeito próprio manteria. Levantando-se, culpou o sono pela cena degradante e decidiu-se: dormiria e, no dia seguinte, com a lucidez de nove horas e sol, resolveria suas pendências. Dado o adeus à lua e às estrelas, deitou-se. Quem sabe até mesmo escreveria sobre o ocorrido? Teria muitas oportunidades, principalmente de rebelar-se. Sim, amanhã se rebelaria como ninguém…
Em anos e anos de quartos e maçanetas fechados, Cristina, velha e mulher, morreu em si.




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