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Algo sobre jazz e uma entrevista com o baterista Marcos Milito

  • Renan Padilha
  • 28 de fev.
  • 43 min de leitura

Ilustração por: Be Fugimoto
Ilustração por: Be Fugimoto

Se a gente estivesse no elevador e você perguntasse pra mim e eu tivesse que explicar o que é antes de chegar no térreo, eu iria nessa explicação de que o jazz é uma música horizontal enquanto o pop é uma música vertical. Digamos que os erros também são mais atentos no jazz do que no pop, assim, tocando. E é isso. Mas o jazz não pode ser qualquer coisa. E eu acho que quanto menos você acha o que é jazz, mais você sabe o que é jazz também.


I. Um, dois, três, let’s jam!


Foi em março de 2023. Estávamos no meio do Greenwich Village quando encontramos um clube de jazz, aberto e apto a nos receber. Era o começo de uma viagem dentro de outra viagem, com assuntos sobre outras viagens, imaginárias e muito, muito, reais. Depois de pizzas com estudantes da New York University perto da Washington Square e uma “expulsão” casual do Metropolitam Museum, a noite ainda revelava seus passos sonoros e impossíveis.


Era exatamente aquele Village dos sonhos. Dos sonhos poéticos e proféticos, que víamos na literatura, no cinema! Na música! O bairro dos imparáveis beatniks, devotos do sax de Charlie Parker. Do bardo, poeta, voice of a generation, Bob Dylan, herói dos heróis. O berço da contracultura, pura e simplesmente. Lá estávamos nós, de braços e mentes igualmente abertos.


Bom, eu e meu advogado adentramos e fomos submersos por fumaça - smoke gets in your eyes - e álcool até de manhã, na ilha de Manhatã. Os sonhos noturnos e caçadas de bruxas de Wayne Shorter, os fixos e sublimes sopros de amor supremo de John Coltrane. Parece cena de filme, conseguem visualizar? Cinemascope. A câmera parada e nos filmando. À meia-luz, os dry martinis. Talvez fosse mesmo uma cena de filme norte-americano, se escrevessem sobre isso. Um “jornalista” e um “advogado” fazendo loucuras pelos Estados Unidos… quem poderia imaginar uma cena dessas? Fato é que eu e meu advogado descobrimos um dos caminhos musicais mais interessantemente diferentes que a humanidade já experimentou: o bom e velho jazz.


E aquele momento ditou o mundo e ditou muito do que aconteceu depois em minha vida. Mezzrow e Smalls Jazz Club. Tais foram os templos sagrados de uma religião (quase) esquecida. E aqui, sua liturgia. Meu advogado já tinha alguma ideia e familiaridade com os locais que frequentamos e já era versado em vários dos standards que viriam confrontar e confortar o parque-de-diversões de minha cabeça, nos dias (semanas, meses e anos!) que se passaram. Conseguimos ver o trio de um tal de Jerry Manasia, exímio pianista e conhecedor dos trópicos (o cara tem uma canção chamada “Curitiba Girl” em seu catálogo, caros leitores, assim, no mínimo algo inusitado). 


Passado da meia-noite, entrando na boa e velha madrugada, é que as coisas ficam boas. Apenas para os sonhadores, amantes, boêmios e aqueles com espírito de artista (que clichê). Sim, bem clichê, piegas, tiozão, mas é a verdade. Praticamente atravessando a rua, estávamos em outro clube de jazz, o tal do Smalls (não reparem se algum de vocês perceberem a presença de um cardápio desse clube exposto em minha sala-de-estar, no meu apartamento em São Paulo; por acaso esse cardápio percorreu uns 8.000 quilômetros de lá pra cá…), que, após a dita midnight, deixava suas portas abertas para quem quisesse entrar, para tocar ou assistir. E foi nesse momento que vi uma força completamente inesperada acontecer.


O conceito de jam no jazz é bem simples. Vários músicos se reúnem e tocam juntos. Algum assume a liderança, puxa um standard, um padrão para os outros músicos acompanharem. A partir daí é medo e delírio. Cada instrumento, cada operador de seu instrumento instruí estas brilhantes orquestras no mais sublime improviso. Cada sopro, cada tecla, cada corda, cada batida, cada acorde, tudo. Tudo é um mosaico multicolorido-quase-caleidoscópio de alegrias e pulsações. Um organismo vivo e violentamente democrático. Todos têm sua chance de brilhar e assumir o destaque do improviso. E sempre, voltando ao dito standard, vez ou outra e ao final. Uma noite de núpcias sonora. Eis a liturgia do jazz.


Nunca havia presenciado nada parecido. Uma pintura sem igual, uma composição de tudo: contra-baixo, bateria, sax alto, sax soprano, sax tenor, trompete, trombone, guitarra-elétrica. Alguém subia no palco, outro descia. Um revezamento de espíritos, de ânimos, tudo em frente aos meus olhos. E todos os tipos de gentes; alunos de música dos bons conservatórios e colégios que os EUA (ainda) têm, ou músicos mais velhos e experientes, viajantes do mundo dos sons e sonoridades, audiófilos de todas as idades. Uma verdadeira ciranda, ou uma “quadrilha”, à la Carlos Drummond de Andrade.


O melhor e mais rico prelúdio que poderia ter antes de, junto ao meu advogado, embarcarmos para Boston em um congresso de Direito Internacional.


II. Are you experienced?


Mas, afinal, o que é o jazz? O velho Lou Reed dizia que “Um acorde é bom. Dois acordes sustentam. Três acordes e você já está no jazz”. . Alguns discos na cabeça e você já se perde (ou ganha) o senso completo: John e Alice Coltrane, Wayne Shorter, Miles Davis, Dave Brubeck, Bill Evans, Art Blakey, Charles Mingus, todos esses titãs viraram velhos conhecidos meus. 


Os anos subsequentes aos fatos narrados foram essencialmente permeados por jazz, caros leitores. Mesmo fora do gênero em si. Até a cultura do improviso, dos night clubs, tudo isso criou um jardim fértil em minha mente. Precisava fazer algo com e sobre isso.


Os nomes citados dois parágrafos atrás são bastante proeminentes do jazz mais instrumental, por assim dizer. Existem vários universos do jazz. Um dos mais reconhecidos, a meu ver, seria o jazz vocal, com vozes como Chet Baker, Sinatra, Nina Simone, Ella Fitzgerald e por aí vai. O “universo” que mais adentrei foram mais dos instrumentos e suas guinadas sonoras insanas. Aquele tipo de percurso estético que faz os críticos de jazz (que chamam de “música de elevador") gaguejarem ao escutar um Eric Dolphy, por exemplo. Tudo isso guiado espiritualmente, em grande essência, pelo gosto de meu advogado e sua disposição de mostrar os gigantes para mim.


Então, eis o quadro. A peça estava montada, os atores a postos. Tudo vinha se desenhando e delineando perfeitamente para mim. Passei a pensar na música de uma forma mais integral, mesmo a música pop. Com contornos históricos, de uma composição e produção que sempre me remontam a essa raíz jazzista ou do blues, o primo mais velho. E meu consumo desse tipo de mídia foi alterado para sempre. Em exemplos rasos, porém essenciais, uma das minhas bandas prediletas se tornou o Grateful Dead, por influências de pessoas muito queridas e por conta do jazz! A ideia do grupo do Jerry Garcia era, justamente, criar um standard e permitir que houvesse um sem-fim de improvisos, de modo que nenhum show fosse igual ao outro, mesmo que, por acaso, as setlists fossem idênticas; mas as canções não seriam, entendem? A música como experiência. O mencionado Reed também gostava dessas improvisações experimentais, do jeitão dele.


Compartilho, também, minha experiência maravilhosamente singular, inebriado de amor e outras drogas, na festa Submundo, em dezembro de 2024, um grande espaço de experimentação do mundo do funk (brasileiro). E se sabe, não é um gênero que domino e consumo tanto, mas ali pude ver ao vivo e em cores a música como experiência. Os DJs criando os ritmos e ditando os rumos das canções ao vivo, sempre baseando-se nos seus standards. Impecável, para qualquer um que goste de música.


Na técnica, consegui notar e começar a valorizar também, mesmo leigo que sou. Para mim, a maior evidência dessa mentalidade jazzista-antropológica que tomou conta do meu raciocínio é ver a bateria do Mitch Mitchell, do grupo Jimi Hendrix Experience. Esse trio, liderado pelo lendário Hendrix e sua guitarra elétrica incontrolável, se consolidou no topo dos grandes mitos do rock and roll. Contudo, caros leitores, o baterista que mencionei, era educado no jazz! Então, havia uma fusão sensacional, como uma alquimia que o Hendrix criava ao compor suas canções, o que permitia que Mitchell brilhasse nas suas entradas, onde quer que fosse. Poderosíssimo. E um passo para o Jazz Fusion (quando o jazz “ficou elétrico”, tipo a virada elétrica do Dylan em 1965), com o Miles Davis, por exemplo, dando os caminhos da incrível guitarra de John McLaughlin. A música como experiência!


III. Jazz de uma nota só


E o que é o jazz, no Brasil? Muitos afirmam que Bossa Nova é jazz e esse tipo de coisa que se tornou um verdadeiro lugar comum. Talvez seja mesmo. A bossa até pode ser jazz, todavia, espertinhos, o jazz não pode ser bossa, compreende? A bossa é mais, é samba, é brasileiríssima. O jazz entrou de gaiato pela zona sul carioca dos anos 50, para se misturar ao bom samba. Ainda não sei qual veio primeiro: jazz ou samba. O que não torna a nossa bossa menos excelente, ou menos samba, ou menos brasileira; é diferente. O melhor é que ela dominou o planeta, e vários nomes do velho jazz quiseram entrar no mundo da bossa nova; de Stan Getz a Frank Sinatra, passando por Chick Corea e Wayne Shorter. Amizades inteiras surgiram, especialmente de Shorter com o lendário Milton Nascimento, à título de exemplo.


Mas existe o jazz brasileiro, sem ser necessariamente Bossa Nova. Abraços, Hermeto Paschoal! Fiquei fascinado por essas ideias, comprei o disco do 1º São Paulo Jazz Festival, lá de 1978. Quis saber de tudo, ver tudo. Assisti a um sujeito, baterista, ótimo no Jazz B, na República, em junho de 2023. Alex Kautz, junto de um poderoso quarteto. Ele me disse que estudou com o tal Jerry Manasia, o pianista que vi em Nova York! 


Queria mais! Comecei a pesquisar a cena e os clubes de jazz de São Paulo, pulando por aí em alguns. Madeleine, Blue Note, Casa Lúpulo, Whiplash Bar, Bourbon Street. Entre outros. Não fui em quase nenhum desses. Sentia uma coisa meio artificial, meio comercial. Pode ser preconceito meu, mas vem daquela velha mitologia do jazz ser algo elitizado, outro lugar comum dos últimos 40 anos, principalmente. Apesar dele ter nascido nas periferias de Nova Orleans. Queria entender a dicotomia e onde ir a partir disso.


Nessas aventuras, acabei passando por Campinas, minha pseudo-cidade natal, ver um trombonista chamado Ryan Keberle. Esse cara simplesmente já havia tocado com, ninguém mais, ninguém menos que David Bowie! E ele tocando em Campinas, mais precisamente em Barão Geraldo, no bairro em que fui criado, terra da adorável Unicamp. Inacreditável. Tudo isso imbuído, fortemente, daqueles sentimentos descritos anteriormente.


Em 2024, consegui, de última hora, por meio de meu advogado assistir ao C6 Jazz, no Auditório do Ibirapuera. Kamasi Washington e Chief Adjuah, com suas bandas enormes e cheias de vida. O melhor do jazz contemporâneo, a poucos passos de mim. Não podia acreditar. Radicalizando essas experiências, em agosto do mesmo ano, descobri um cara chamado Boccato, que tem uma banda e, toda terça depois das 11 da noite, ele toca umas jams no NossaCasa, lá na Vila Madalena. Puro êxtase. E, mais recentemente, uma singela homenagem ao Art Blakey, mais uma vez no Jazz B, com uma qualidade técnica impecável. Inaugurando 2025, em excelente companhia. 


Poderia viver pela música, caros leitores. A música, como disse? A música como experiência. Encontro e desencontro.


IV. O que é o jazz? ou Uma entrevista


Droga, mas ainda não sabemos o que é o jazz! E onde está o jazz! Depois de tanta enrolação, caros leitores, pensei em garantir a opinião dos especialistas.


Em meio às conversas com cineastas da cidade de São Paulo, fui encontrar um norte para tentar responder essas questões de passado, presente e futuro do jazz, e do jazz em São Paulo, com alguém que soubesse sobre o assunto. 


Gonzo jornalista que sou, conduzi uma entrevista à minha maneira e a transcrevi aqui, caro leitor, à minha maneira também (um papo gravado e anotado de uma hora e 22 minutos), sempre fiel às informações que recebi. Senhoras, senhores e outros (abraços Bowie), fiquem aqui com a entrevista, feita dia 9 de outubro de 2024, regada a whisky, com o excelente e simpático baterista Marcos Milito, bacharel em bateria com ênfase em performance pela Faculdade de Música Souza Lima, em 2023, e com especialização em um curso de verão pela New York University, em 2022.


Eis a entrevista, na íntegra:


Renan Padilha: Então, Marcos, mais uma vez, boa noite. E, então, obrigado pelo convite. Para o convite, não. Por aceitar o meu convite, aliás. É a primeira vez que eu tô fazendo isso na minha vida. Então, já esteja preparado para gafes. Mas, vamos lá, sem mais delongas. De onde veio essa sua aplicação de ser baterista? A vontade, a paixão, o amor... De onde veio? Onde nasceu isso em você? Primeiramente, obrigado pelo convite. E... foi uma boa pergunta isso daí.


Marcos Milito: A minha família... ninguém é músico da família, mas todo mundo é entusiasta musical. Então, sempre tive inserido na música desde pequeno. A escola também, a Valder, foi responsável também pelo que eu ia seguir nesse caminho, assim. Então, desde pequeno, eu tive ensino musical lá. Mas eu tinha por volta de 12, 13 anos. E a gente precisava fazer uma tarefa da aula de música, que era compor uma música. Eu juntei alguns amigos, e a mãe de um desses amigos era baterista, e a gente foi na casa dela ensaiar. E... ela era baterista de hobby, assim. A gente foi ensaiar lá, e eu tinha uma concepção totalmente preconceituosa com a bateria.  


Eu falava, pô, são quatro tambores lá, e na maioria das vezes são quatro tambores, e alguns pratinhos. Então, eu acho que é fácil tocar esse negócio. Porque é um piano, tem um monte de tecla. A guitarra tem um monte de nota também. A bateria é só isso, sabe? Tá ali, não é tão difícil assim. É só bater. É só bater, pô. Não tem... cadê? E aí eu quebrei a cara, assim. É um instrumento difícil de tocar. Assim, lógico, todos os instrumentos são difíceis de tocar, mas como a bateria você usa os quatro membros quase o tempo todo, se não realmente o tempo todo, você precisa ter um preparo diferente voltado pra isso, né? Eu decidi fazer aulas pra começar a aprender realmente como se toca o instrumento, e aí eu fui me apaixonando, assim. Mas eu decidi que eu ia virar músico e realmente levar a sério quando eu conheci o jazz. Aí o jazz me fez querer seguir com isso e falar, não, beleza, vamos estudar esse negócio ali.


R: Isso foi com quantos anos? 


M: Eu estava no meio do ensino médio, assim. Eu tinha uns 16 pra 17. Aí o meu professor na época, que é um baterista de jazz bem reconhecido aqui da cena de São Paulo, chama Paulinho Alves. Enfim, aí ele virou pra mim e falou, olha, vamos aprender outros gêneros do que pop e rock, né? Aí eu comecei a querer escutar as bases, a raiz do rock. Eu fui escutar blues e também depois, mais pra frente, um pouco do que foi depois do blues, eu comecei a ouvir jazz e aí eu falei, não, beleza, isso é diferente. Eu quero estudar isso mais a fundo. Era totalmente diferente, né? 


Posso falar disso mais pra frente, mas ele é um som... Eu sinto que ele é mais democrático, assim, do que pop e rock. Tipo, falando porcamente sobre isso, você vê como os instrumentistas se portam, até como eles se colocam no palco. Eu vejo que a formação, assim, por exemplo, no palco é você. Aqui fica o cantor na frente, o cantor, o guitarrista e o baixista aqui, e o baterista lá atrás, assim. Mas sim, o que faz sentido por conta do lugar onde se toca, o estádio. Você precisa que a bateria esteja atrás para que ela seja ouvida pelos outros integrantes da banda. Tem uma história engraçada. Teve um show dos Beatles, aquele show no estádio mega famoso que a galera vaiava e tal. 


R: É no Shea Stadium em 1965? 


M: Isso. Nesse show eles não se ouviam de tanto barulho, mesmo com a bateria estando lá atrás, assim. Tanto que o Ringo foi o grande responsável para mudar a técnica de mão da bateria. Normalmente quando você toca jazz você usa o tradicional grip. Eu costumo tocar desse jeito. Mas ele, pra ter mais chance de projeção sonora na caixa, ele começou a tocar, o que a gente chama de match grip, né? Que é do mesmo jeito das duas mãos. 


Enfim. E aí eu fui vendo esse jazz mais a fundo, mas também, lógico, foi a paixão, por conta dessa democratização também. Mas também foi um pouco de conveniência. Eu também, nessa época, eu tinha que escolher algo pra fazer da vida. E foi na época que eu decidi ser músico. Eu queria fazer uma faculdade e eu sabia que a faculdade, ou na maioria das faculdades, ou você aprende música erudita, mas a bateria não tem, não toca música erudita, é um instrumento popular, apesar de ter percussão na música erudita. Ou você se aprofunda em jazz, ou música brasileira, instrumental, que a gente chama de música instrumental, que é uma música criativa. 


E também tem algumas coisas de família, é meio bizarro, às vezes eu falo com a minha mãe, e realmente a minha família é daquelas que canta parabéns no ritmo errado ou desafinado. E todo mundo tentou, minha avó tentou desde pequena até perto de morrer, aprender a tocar piano, nunca conseguiu. Mas o meu avô, que eu não cheguei a conhecer, minha mãe falava que ele gostava muito de música, tinha uns discos de jazz. Então é bizarro, que tem umas músicas que eu ouço e falo “pô mãe, olha essa música que bonita”, e eu nunca mostrei pra ela. Tem um caso, eu tava mostrando acho que mês passado, retrasado, sei lá, eu tava ouvindo Johnny Alf, que eu não sei se você conhece, mas Johnny Alf é raro, e aí eu tava escutando aquela “Brisa” dele, sabe? Aquela balada dele. Porra, aquela música é linda pra caralho. Nossa, e aí eu mostrei pra minha mãe, pô mãe, olha essa música, que foda. Aí ela falou, seu avô tocava essa música sempre pra eu escutar.


R: O meu avô é pianista, cara, eu tenho uma ideia de como é ter músico na família assim, porque ninguém manja de música na família, só meu avô. E eu tento todos os anos, todo ano eu falo que eu vou fazer algum instrumento, já tentei violino, sax, violão, contrabaixo, guitarra. Eu tô com meu violão aqui, eu tenho um violão, trouxe para São Paulo, não me arrisquei ainda. Então eu sei como é. E pô, Johnny Alf foi um undercut maravilhoso. Os leitores vão amar isso.


Bom, então, saindo disso, você então entrou na faculdade de música. Você estudava música aonde? E desde quando? 


M: Na faculdade de Sousa Lima, ela fica na Paulista, perto do quartel general lá do exército. É uma faculdade pequena, assim, é um prédio pequeno, até se você for comparar com outras faculdades, mas é muito bom lá, assim, acho que é uma das maiores faculdades do Brasil, com certeza de São Paulo, assim, de música popular, posso afirmar. 


R: E desde então, você anda fazendo o quê? 


M: Eu já tinha começado a tocar por aí, quando eu estava no começo da faculdade, né, na medida do possível, assim, com a pandemia, mas depois quando acabou, comecei a tocar cada vez mais. Hoje em dia, eu estou, entre muitas aspas, um ano sabático, assim, eu estou estudando bastante e tocando bastante por aí, desde jazz até outros gêneros musicais, assim, eu toco numa banda cover de Coldplay, por exemplo, então eu toco, eu toco de tudo. 


E eu estou em processo de preparação, assim, estou estudando para prestar para mestrados na Europa ano que vem. Eu até tinha prestado nos Estados Unidos, mas é muito caro. Assim, eu já fui pra lá tocar, eu fiz um curso de verão no NYU, mas não sei se contaria.


R: Fantástico, perspectivas maravilhosas. Agora, entramos num void mais central do que é o objetivo disso aqui tudo. Jazz em São Paulo. Onde você toca? 


M: Vamos lá. Onde eu toco essencialmente jazz.


R: Isso, essencialmente jazz. Porque agora a gente saiu um pouco da sua formação como baterista e vamos pra cena de jazz em São Paulo, que é o objetivo principal daqui. Não que a sua biografia não importe, porque ela importa muito.


M: Não, não, sem problema. Mas aí eu queria perguntar uma coisa pra você. O que você entende como jazz? 


R: Nossa! O entrevistador foi colocado contra a parede.


M: Porque se você considera porque os bares aqui tem bares de jazz, mas eles também você acaba encontrando subgêneros do jazz em alguns tipos de bares. Em alguns tipos de local para certos tipos de público. 


R: É exatamente isso que eu quero saber. Porque eu considero o jazz como um macrogênero que tem subgêneros, como o rock. O rock é um grande gênero, tem punk, pop punk, post punk, o caralho a quatro. Nossa, desculpa. Gravação não pode falar palavrão. Mas o... Porque quando eu penso em jazz, as pessoas no geral pensam em música de elevador, Kenny G, sei lá. Eu penso NossaCasa, Vila Madalena, talvez. Sim, NossaCasa. É, eu frequento, por isso que eu sei. Ou, sei lá, o Jazz B; aí se você for pegar uma coisa mais high class, o Blue Note, mas isso vai ser tópico de outras perguntas. Especialmente o Blue Note. 


M: É, então, eu ia falar desse lugar assim, ah, Blue Note, o Jazz B. Os primeiros lugares que eu falaria seriam o Blue Note, o Jazz B, o Madaleine também, na Vila Madalena, uma pizzaria lá. All of Jazz, acho que é uma das casas mais antigas aqui, acho que tem uns 28 anos. Tem outras que são mais instrumentais. Tem uma casa nova lá agora que se chama Let's Beer, tem uma galera rolando lá bastante. E o Moema também tem o Bourbon Street, que é bem famoso.


Deixa eu pensar. Talvez saindo para os subgêneros, se você quiser algo mais refinado, o Terraço Itália eu vejo que rola bastante coisa lá, sim. Tinha um lugar, mas eu acho que vale a pena ser citado aí, que era o Santa Madalô, que era um show que rolava no beco do Batman, mas parou depois da pandemia. Foi bem no período 2021, 2022. Era onde rolava o melhor som de São Paulo. Também, eu já toquei quase todos os lugares que eu falei. Tem o SESC também. O SESC rola muito jazz também.


Acho que não jazz tradicional como a gente vê em outros lugares, mas tem bastante jazz lá. Tem a terça-feira o SESC Consolação, na minha opinião, acho que é um dos maiores lugares para se escutar a música. 


E também o Tatu Bola, ali do lado do Paulistano, por incrível que pareça, tem rolado recentemente jazz na segunda-feira, e eu conheço o curador, e ele faz um trabalho incrível, chamando a galera mais para frente, que está mais prolífica. Está sendo um trabalho bem legal. 


Deixa eu pensar em mais lugares que talvez possam ser interessantes. E Moema, tem o... Do lado do Bourbon Street tem o Steel Bar. Ele essencialmente toca rock, mas alguns dias toca jazz lá.


O Whiplash ali na Rebouças também toca jazz, terça-feira, quarta-feira. E tem um lugar, eu nunca toquei, eu estudo lá, mas às vezes rola som, chamado Instituto. E as vezes rola som do Instituto, é uma casa, e na minha opinião, lá é o melhor lugar para se ouvir jazz. Porque lá, não é uma escola, mas é uma escola de música, mas lá você acaba tendo práticas de ritmo, práticas de banda mesmo, e aulas individuais de baixo e piano, porque é um cara que é o Bruno Migotto que é meio que o dono desse lugar. Enfim, às vezes ele promove alguns shows lá na casa dele. Acho que é isso.


R: Evidente, evidente. Se eu quiser colar, por exemplo, no Instituto, como é uma escola, eu tenho que ver o dia específico e ir? 


M: Então... Lá é bem informal, acho que por isso que é tão interessante. A gente pode falar disso mais pra frente, se quiser. Mas você pode mandar mensagem no Instagram deles, é @ins.titutosp e eles acabam divulgando lá os shows e aí você... E aí pra você comprar os ingressos, você manda uma mensagem falando que você tem interesse no show e aí você vai. Mas é um lugar pequeno, assim. É uma sala, quase.


Normalmente é um rolê, assim, de músico ou de pessoas que entendem um pouco de música, assim. A galera leiga, não costuma ser quem está nesse lugar.


R: Muito obrigado, você deu um panorama muito, muito incrível do voo de pássaro que eu queria. Obrigado. Então, tendo em vista todos esses lugares, todos esses artistas, essas pessoas que esse tal, esse Bruno que você falou, que parece uma pessoa incrível, como você definiria a cena de jazz em São Paulo? Tipo, em uma palavra, ou... Um raciocínio simples. Uma frase, ou uma oração construída, assim, de forma simples.


M: Entendi, entendi. Boa pergunta. Caramba. Tá. Não potente, mas muito potencial, mas às vezes ingrata. Eu diria isso, sim.


R: Você tem alguém que você, além dos nomes já citados, alguém que você admira, assim, da cena? Daqui de São Paulo? 


M: Aí, o baterista Gabriel Cruz, que eu faço aula com ele, o Bruno Migoso, eu também faço aula com ele, faço aula lá no Instituto. De guitarristas, deixa eu pensar... Você tem o Vinícius Gomes, mas ele transita entre aqui e Nova York. Acho que ele mora mais em Nova York, então acho que não conto. Deixa eu ver... Trombonista, o Edson Santana, ele dava aula lá no Souza Lima, é um cara muito diferente, assim, de tocar. Baixista, Sid Vieira. Deixa eu pensar... De sopro, o trombonista, Jorginho Neto, é um cara bem famoso no nicho. Thomas Souza, ele não é tão novo, mas ele é novo no nicho, ele toca pra caralho. Trompetista, tem o irmão dele, do Sid Vieira, que é o Sidmar Vieira, eles têm um projeto, inclusive, juntos. Acho que só assim... Ah, baixista, o Bruno Migoso é baixista, né? Falei dele antes. Acho que é isso, mas eu posso falar de vários. Os primeiros que vieram na minha cabeça, assim, de projeção, assim, de nível de fama no nicho de jazz. Se você perguntar deles, o pessoal vai saber e deve saber.


R: Perfeito. Já é um grande começo maravilhoso que eu poderia ter em mãos. Prosseguindo.


Sobre, então, voltando àquela questão que eu falei da diferença de clubes e de clubes de jazz, bares, etc. Você acha que o jazz aqui no Brasil ainda é muito elitista? Se é que já foi elitista? Você falou pra mim no começo que o jazz é muito democrático pela disposição dos músicos. Mas o acesso ao jazz, ele é democrático também? 


M: Excelente pergunta. Eu acho que certos casos ele tenta ser, mas na prática ele definitivamente não é. Você tem até... Você tem até projetos que tentam democratizar o jazz, tipo o Jazz na Kombi. Eu acho que é um projeto bem legal, assim, que acontece. Tem um jazz do Limoeiro também que acontece na rua, de graça, ali na Teodoro Sampaio.


Esse Jazz na Kombi ele é meio errante, assim, ele vai caindo em diversos pontos. O próprio Sesc tenta, querendo ou não, com ingressos mais baratos ou de graça esses festivais também que acontecem por aí. Mas, de resto, eu diria que é elitista.


Porque há vários lugares, como Terraço Itália, que acaba tendo jazz, é super mega elitista. Outros lugares, como... Tem uma casa em Pinheiros que é meio autoral, música brasileira instrumental, sei lá, chama a Fino da Bossa. Lá, pelo que eu me lembro, é R$90,00 o ingresso.


Isso é um absurdo, né? Então, o próprio Blue Note, às vezes, o Blue Note eu acho meio caro, dependendo da semana e do show que você vai assistir. O jazz dele não é tão caro, mas ele tem um esquema de lote, né, se você já foi lá, mas se você entrar antes, você paga mais barato do que depois, alguns bairros são assim, né. Mas, essencialmente, todos esses bairros que eu falei, poucos tem o cover abaixo de R$20,00.


O Madaleine é caro pra caramba. É, porque quando eu falei, só de dar a ideia dessa matéria pra algumas pessoas, essa questão vem muito à tona. De, ah, mas é falar de jazz, ah, Blue Note, ah, Madeleine, é o que o pessoal sabe, que são esses chamarizes que são esses poços de elitismo.


Não que sejam ruins, não tô falando que... Mas, assim, deixa a margem do acesso à cultura mais inacessível. 


R: Eu mesmo nunca fui no Blue Note, e eu já fui em vários desses clubes aí, esses clubes e bares, etc. Mas, talvez seja por birra, não sei. Eu moro muito perto do Blue Note, eu moro mais pertinho da Paulista, eu podia ir a pé, praticamente, se eu quisesse. Mas, enfim. E o Blue Note é um selo musical da gringa lá? 


M: Você tem um álbum pelo selo do Blue Note, você tá feito. Mas, eu entendo o que você diz do Blue Note, eu, às vezes, tenho um pouco de birra de ir pra lá, e eu não moro lá perto, mas a minha namorada mora do lado também, eu tô aqui hoje também, eu conseguiria ir a pé pra lá. Mas, eu entendo o que você falou, e sim, esses lugares mais famosinhos, assim, de jazz, eles são um pouco... O Bourbon Street também, o couvert deles é caro também.


E muitos desses lugares, como o Blue Note e o Bourbon Street, apesar de se venderem como jazz, uma casa de jazz, eles não tocam 100% jazz, a maioria das vezes até é outra coisa, assim, ser jazz do que jazz. Isso até é um ponto interessante da gente demarcar o que é jazz. Mas, voltando ao assunto do elitismo, mas é, pra caramba, assim, cultural, semana retrasada, eu acho que foi semana retrasada passada, eu fui no São Paulo Jazz Week, a gente esteve lá no Memorial da América Latina, não sei se você ficou sabendo.


Bom, teve festival e tiveram artistas gringos, artistas do Brasil, e o público lá, a maioria era branco, com certeza. E o ingresso não era caro, devido à galera que ia tocar lá e a quantidade de tempo que você ia estar lá, mas era caro, assim.


Eu paguei 80 reais no ingresso e não é qualquer pessoa que consegue pagar 80 reais no ingresso. Beleza que tinha a programação do meio-dia às 8 horas da noite, mas mesmo assim. É, não é a mesma coisa do que pagar 20 reais ou nada no Sesc, por exemplo.


Mas também rola muita coisa na rua, na Paulista, eu já toquei jazz na Paulista, mas respondendo a sua pergunta, é elitista até, se você olhar na história, o jazz começou a ser elitista quando ele começou a ser tocado por integrantes da banda 100% Branco, com West Coast Jazz, o Cool Jazz, que é o jazz que a gente hoje em dia falaria que é o jazz de elevador. 


É, então, isso acabou embranquecendo o gênero musical, porque a raiz dele não é nada disso, e não é nada música para elevador, a galera ia dançar, era uma música... Se você ver, é muito engraçado a galera falar mal do funk hoje em dia, mas na escola eu fiz um TCC sobre a história do jazz e eu tava olhando sobre o ragtime. O ragtime é tipo o Scott Joplin, assim. Se você entrar num filme velho-oeste, vai ter alguém tocando ragtime no... No piano, no salão.


É a maior definição de ragtime que eu consigo pensar. E a galera falava, pô, essa música é do demônio, se os filhos vão querer ouvir esse negócio, né, pra deixar, porque essa música é um lixo, não deixa ouvir, essa música é pobre musicalmente. E os jovens adoravam, porque justamente era rebeldia pra caramba comparada à música da época, né.


E principalmente que os pais não gostavam. Assim como a gente vê em todas as épocas do movimento rock, o punk, o funk hoje em dia, ou o funk James Brown antigamente. Então o lance da elitização do jazz acabou também tendo que fazer ele mudar, inclusive a maneira de se tocar, assim.


Tanto que o Miles Davis começou a tocar fusion por conta disso também. Na época ele estava no período do post-bop, assim. Não só ele, o John Coltrane também, o Wayne Shorter também, que são os dois saxofonistas, né. Apesar do que o Miles é trompetista.


R: O Wayne Shorter é o meu favorito. Eu sou viciado no Wayne Shorter.


M: Curiosamente eu nasci no mesmo dia que ele, assim.


R: Não acredito, na moral? 


M: Sim, sim, ele nasceu no dia 25 de agosto. 


R: Eu fui pros Estados Unidos, tipo, poucos dias depois que ele morreu. Só tava tocando isso lá. Eu ouvi Speak No Evil, assim, on repeat, em todos os lugares que você ia dos clubes de jazz que eu fui. Eu fui no Mezzrow, fui nos Smalls, tudo no Village. Você anda 3, 4 quarteirões, você vê 3 clubes de jazz, é impressionante lá o Village.


M:  E eu fiquei lá no alojamento da NYU, que se atravessa o Washington Square Park. Eu fui lá, fui... Eu não tinha muito tempo lá, porque o curso era das 7h às 9h30 da noite, assim, mas no final de semana eu fui nos Smalls, e no domingo eu fui no Village Vanguard. Foi a melhor gig que eu já vi na vida.

R: Eu entrei nos malls de graça, eu literalmente consumi uma água e... Nossa, isso vai ficar na gravação. Eu roubei um cardápio do... Ah, eu vou pegar, olha você. Eu roubei um cardápio dos Smalls. Tá aqui em casa, eu vou pegar rapidão. Aqui, ó. Eu roubei o cardápio dos Smalls Jazz Club. 


M: O cardápio dos malls mesmo, caraca, bicho.


R: É, ó, tudo em dólar, beer, cocktails, tudo aqui em doletas. 


M: Caraca, mano. 


R: Eu roubei esse cardápiozinho dos Smalls Jazz Club. Foda-se. 


M: Caramba, que demais isso daí. 


R: É, cara, eu tô falando, esse jornalismo aqui é completamente maluco.


M: Foda demais. Mas é isso, assim, o Miles Davis começou a tocar fusion por conta disso. Ele viu os festivais de rock, assim, aí baseado no que eu lembro do documentário dele lá que tinha na Netflix, ele via, tipo, esses brancos tocando quatro acordes e ganhando dinheiro pra caralho nos festivais lá. Mas aí ele adaptou pro jeito dele, assim. Então que nessa época ele começou a... O fusion, né, que aí ele começou a implementar elementos de rock, música brasileira, pop, da época, funk, né. Então que nessa época ele chamou o Ayrton Moreira e o Hermeto Pascoal, né, pra tocar com ele.


R: Ah, é? Eu não sabia disso. 


M: É, eles tocaram com ele, assim. Então tem até uma história que o Hermeto nocauteou ele no maluco. O Miles adorava roubar música, né. O negócio que ele gostava de fazer era roubar música. E aí, se eu não me engano, ele tinha... Aí eu não posso afirmar 100% o motivo da briga, né. Mas o Miles creditou duas músicas que eram do Hermeto no nome dele. Esqueci agora o nome das duas músicas, não posso pegar depois. E aí, enfim, eles brigaram e falaram, tipo, vamos lutar, vamos lutar. Só que o Hermeto Pascoal é um cara grande, só que ele é vesgo. Então o Miles não sabia pro jeito que ele tava olhando, assim. Então ele achava que ele tava baixando a guarda pra olhar pro outro lugar. E aí o Hermeto foi lá e deu um gancho nele e... É um dos orgulhos de ser brasileiro. Mas aí toda essa volta pra falar que sim, o jazz hoje em dia é muito elitizado. O acesso dele não é tão fácil, apesar de terem projetos onde tenta-se facilitar esse acesso.


R: Como você vê, você como um bacharel em música, um baterista e todo conhecedor da cena e da história do jazz. Como você vê o futuro do jazz no Brasil? Considerando o Hermeto, o Milton, toda essa galera que mexe com o jazz aqui e as influências externas que a gente já falou. Como você vê o futuro do jazz no Brasil e, depois, se você puder responder, em São Paulo?


M: Boa pergunta também. Eu vou começar falando jazz geral, jazz Brasil e São Paulo. Porque eu acho que isso vai afetar, querendo ou não. A gente vai vendo que certos gêneros, querendo ou não, vão ficando datados, porque são frutos da sua época, assim como todas as artes. E o jazz, eu sinto que, no começo dos anos 90 pra cá, ele tinha muito o lance da volta dos timbres limpos. Então, baixo acústico, a guitarra, sem ter aquele comportamento da guitarra de rock, piano, piano mesmo, sem ser teclado.


Os anos 2000 também tiveram essa fase, né? A bateria também era um kit de jazz, né? Que é o Pump-18. Mas dá pra perceber que, a partir da década de 2010 e agora, eu sinto bastante a volta do baixo elétrico. É algo tipo uma reinvenção do fusion, assim. E até um pouco dos elementos hip-hop. O Robert Glasper, eu acho que é um grande culpado desse fenômeno do hip-hop-jazz, assim, que a gente vê. Que hoje, aqui no Brasil, é meio febre, assim.


“Bateristicamente” falando, há anos ou maior, desde que a bateria foi inventada, eu vejo que o baterista sempre tentou imitar o barulho da palma, que a gente faz, né? Porque a gente não consegue. A gente até pode tocar o ar da caixa, pode tocar a própria caixa mesmo. Mas aí inventaram um negócio chamado clap-stack. Que parece um taco mexicano, olhando aqui. Porque há um monte de pratos finos, assim, virados assim. Eu posso achar uma foto. E é que ele imita direitinho a palma. Então, e isso com certeza foi por conta da influência do hip-hop. A gente chama de, agora é pop de baterista. A gente chama de stack, que é quando você empilha mais de um prato em cima do outro. E isso agora também é muito moda, assim, na bateria, ou no jazz, ou em geral. E é por conta, eu vejo, da influência do hip-hop na música, no geral.


E eu acho que daqui pra frente, isso vai ser cada vez mais comum. Apesar de que quando um gênero, um subgênero aparece, o outro não morre, né? Eles coexistem, né? Mas eu vejo isso no jazz geral. Então, você vê o Roy Hargrove estava fazendo isso na década passada. O Robert Glassman faz muito isso hoje em dia com os projetos dele, né? E essa volta do fluxo eu vejo bastante. E aí no Brasil, eu acho que não tem como escapar disso. Querendo ou não, o Brasil, ele é colonizado culturalmente pelos Estados Unidos e pela Europa.


E acho que a gente até tem um pouco do jazz europeu na gente, mas a gente é bem mais influenciado pelo jazz americano. Então acho que isso vai acabar tendo um impacto maior aqui do que lá. Mas eu vejo muito que, apesar do jazz aqui, a música brasileira ainda prevalece bastante. A gente sempre tenta traduzir para o nosso jeito. Apesar de que os bares de jazz mais renomados de São Paulo não gostam que se toque música brasileira. 


R: Mesmo com arranjos de jazz? 


M: Sim, eles não gostam. Eles falam que o forte da casa é jazz, ou aqui não se toca música brasileira. É sempre assim. Esses lugares mais famosos aí... Quanto mais chique e da galera da elite for o lugar, maior é a chance disso acontecer. É bizarro, assim... É o Milton que me ensinou a falar jazz (jâz) e não a falar jazz. Tem até uma piada também, que é... Eu vejo que quanto mais você vai entrando nesse mundo, menos você vai falando jazz, mais você vai falando jazz. É engraçado. E aí você vai ficando tipo gig, você não fala show, você fala gig. Todo mundo do nicho fala gig, ninguém fala show. Mas é isso, eu vejo que a influência do hip hop está muito em alta hoje em dia, no som que acaba sendo feito, mas com a influência da música brasileira.


O Jorginho, que eu comentei anteriormente, tem muito essa pegada. O baterista dele, o Daniel Pinheiro, tem muito essa pegada também. Mas tem muito do time limpo ainda. E outra coisa que eu vejo que está cada vez mais em alta desde a década passada são ritmos ímpares ou polirritmia, começar a brincar mais com ritmos. Dá pra ver muitos ritmos ímpares. Até pra gravação ficar boa. Ritmos ímpares, aí pode gente mirar, polimetria, modulação métrica. 


R: Mas enfim, e São Paulo? 


M: E São Paulo, beleza. Se tratando de bares e lugares para se tocar, eu acho que agora está se consolidando mais. Porque a pandemia realmente prejudicou muito a produção. Muitos bares fecharam. Tanto aqui quanto em Nova York. Em Nova York, por exemplo, fechou o 55 Bar, que é um bar famosíssimo. Aqui em São Paulo, se não me engano, o Jazz nos Fundos fechou o ponto da pandemia. Mas outros bares ou fecharam, ou acabaram precarizando muito o trabalho do músico. Tanto que teve um bar, que não sei se posso falar o nome, mas ele ficou devendo dois meses, um mês, sei lá, de cachê pra todo mundo se botar no lugar. E é um bar grande desses que a gente falou.


R: É melhor nós não falarmos porque eu não quero polêmicas com essas coisas. O Hunter Thompson já teve polêmica suficiente quando ele escreveu o Medo e Delírio em Las Vegas com os cassinos de Las Vegas. E os cassinos de Las Vegas, os donos são mafiosos.


M: Aqui no Brasil, eu não faço ideia de quem são os donos de bares de Jazz, mas eu não quero nem saber. Mas é isso, eu sinto que foi... É um negócio meio... Tanto que vai ter a ver com aquela frase que eu falei, não é muito potencial, mas às vezes... Ingrata. Precarizado, agora não lembro exatamente o que eu falei.


R: Você falou ingrata. Isso, que dá pra perceber com... Não sei agora nisso, não tenho tanta noção de como era. Mas pelo que me falam, o valor, o número do couvert, quando se ganha, não mudou desde o começo dos anos 2000, anos 90.


M: Então, o lugar onde você normalmente cobrava R$30 continua cobrando em torno disso, enquanto toda a inflação mudou. O que acaba gerando precarização no trabalho. Mas isso na pandemia também não só complicou a vida do músico. Mas isso é Brasil, cara. Isso é Brasil, porque aqui a gente também tem essa ideia de que artista não é trabalho, arte não é trabalho, então não tem essa ideia de remuneração.


R: Eu vejo bastante disso na literatura. Mas enfim, você vê isso na música. 


M: Não, é isso sim. Mas aí a questão de gênero musical, mesmo assim, como a evolução... Falando agora sobre música mesmo, não sobre outros impactos. Eu acho que também a gente vai acabar lidando com isso. Essa dualidade do que eu falei, dos ritmos ímpares e da infância do hip-hop.


Mas sem perder a essência da música brasileira. Eu acho que isso não tem como tirar daqui. 


R: E eu vi um cara lendário, já é lendário, mas é da nossa geração musical, que é o Kamasi Washington. Você conhece?


M: Conheço. 


R: E o cara tocou com o Kendrick Lamar. Eu como leigo no esquema musical, entendo o que é a influência do hip-hop no jazz.


E o auditório do Ibirapuera estava todo lotado. Eu achei isso muito interessante, porque foi o primeiro contato que eu tive com jazz em São Paulo vindo de fora. Porque eu só via as bandas daqui, assim. E assim, curiosidade. Eu vi um trombonista chamado Ryan… alguma coisa.


M: É um branco que toca música brasileira, dizem, né? 


R: É, é, é ele mesmo. Ryan... Ryan Keberle, uma coisa assim. Isso aí, sim. Eu troquei Instagram com ele, falei, conversei com ele. Ele foi tocar em Barão Geraldo. Eu sou de Barão Geraldo, cara. Eu não sou de São Paulo. Eu sou bauruense, criado em Campinas. Só que em Campinas eu fui criado no distrito de Barão Geraldo, que é onde fica a Unicamp. E ele tocou num bar de um amigo dos meus pais, cara.


M: Ah, é o Batataria, né? Não é isso? 


R: Não, não, não. É do lado da Battataria Suíça. Ele tocou no Reúne. E aí eu fui lá, eu fui lá e, cara, eu conversei com esse cara. E ele conhecia todos os caras que eu falei que eu já vi. Tanto em Nova York quanto em São Paulo. Eu acho isso incrível. Enfim. Mas eu estava falando do hip hop no jazz e acabei falando do Ryan. Mas tudo isso vai estar no texto. Essa é a graça. Tudo isso vai estar no texto. Você vai ver isso. Enfim.


Eu não tenho mais perguntas, cara. A única pergunta que eu deixei de fora, que era essa coisa, né, como o jazz era uma coisa como John Coltrane, no mainstream do jazz, e foi pra um Kenny G da vida. Era essa, pra você discorrer sobre isso. Se você quiser, você pode falar sobre isso. Se não, a gente se despede e finge que a gente teve um momento agradável aqui.


M: Vamos lá, vamos lá. Eu tô curtindo. 


R: Não, que a gente tá batendo uma hora. Eu não quero destruir mais a sua noite de quarta-feira. 


M: Não, não, não. Tá sendo um prazer estar aqui. Pode perguntar o que você quiser. Eu acho que o trabalho que você está fazendo é de muita importância pra cena musical de jazz aqui em São Paulo. Porque quanto mais pessoas souberem do que acontece, melhor. Porque bem nesses festivais, como você falou, o C6 Jazz estava lotado. Esse Jazz Weekend que fui estava lotado. E a maioria das casas de show que a gente vê aqui no final de semana, ou até de linha de semana, estava lotado também.


A galera gosta de ouvir esse negócio, porque a própria experiência do show é uma coisa baixa, principalmente quando a pessoa não está habituada. Eu falo isso porque é um instrumento. Não é todo mundo que vê um desses. Isso aqui não é verdade. Mas eu toco num evento que faz festa infantil, por exemplo. Eu levo a bateria para o festival infantil.


A criança que tem meio metro de altura, olha esse negócio e fala: “Caraca, que negócio é esse?”. E a pessoa adulta também não é tão diferente. Então eu acho que quanto mais trabalho pra catalogar, entre muitas aspas, e compartilhar isso com a pessoa leiga que tiver, melhor vai ser pra todo mundo. Pergunta o que você quiser aí, que eu falo.


R: Eu quero entender, então, você que é um cara do meio, um cara que fez um TCC sobre história do jazz, como que nós saímos de John Coltrane, como assim, a principal coisa que o jazz estava acontecendo pra um Kenny G da vida. Tipo, todo respeito ao Kenny G, mas nenhum respeito ao Kenny G. 


M: É válido esse seu descontentamento.


R: Só um parênteses em relação a isso. Tem uma peça de teatro maravilhosa sobre o Kenny G, que é um monólogo de um dos meus autores favoritos aqui de São Paulo, que é o Mário Bortolotto. Inclusive vários no teatro dele, se você tiver a oportunidade, que é o Teatro Cemitério dos Automóveis, fica aqui no Bela Vista.


M: Ah, tô ligado, tô ligado. Mas é isso. Mas eu entendo o seu descontentamento com isso, mas eu acho que... Aí tem alguns pontos interessantes para se refletir sobre. O primeiro é um pouco da questão do tiozão do rock, falando que hoje em dia o rock não tem nada demais, sabe? Mas não tem nada demais por quê? Porque você não procura, sabe? Tem um monte de artista super novo, como você falou, o Kamasi Washington, que é super famoso.


Lógico, no meio, mas é super famoso no meio. O que eu considero também o Kamasi como até pop. Muitas vezes, sim. Mas até aquele... Acho que é... Jon... Eu esqueci o nome dele, mas ele fez a trilha sonora do Soul, da Pixar. Jon Batiste, não lembro o nome dele. Ele é um puta pianista de jazz. Ele acompanhava o que eu falei do Reinhardt Groove, que era um grande prospecto. Foi conhecido pelo Wynton Marsalis.


Acho que você conhece o Wynton Marsalis. O Wynton Marsalis é o band leader e diretor da orquestra da Lincoln Center, em Nova York. É literalmente, para muitos, o dream team do jazz. Eles vêm para cá, às vezes. A última vez foi em 2019. Vale a pena conhecer o trabalho da Lincoln Center. Mas voltando à pergunta, vai um pouco também a questão do embranquecimento do gênero e um pouco também de virar um produto.


Então, foi assim. Se você pegar qualquer gênero musical, estilo musical, ele acaba tendo que se adaptar ao sistema da cultura de massa. Não tem jeito. A gente pode tratar um pouco do que o Adorno fala, mas acho que talvez não seja tão por aí, mas é a questão de você ter que adequar o máximo para que a massa possa consumir. E acho que o Kenny G faz parte disso, mas eu não acho que o Kenny G toca essencialmente jazz. Mas ele pode tocar. 


A mesma coisa, eu acho que me pega mais como gatilho pessoal, é a Amy Winehouse. Porque muita gente considera ela como uma cantora de jazz. E ela não é uma cantora de jazz, ela é uma cantora de soul, R&B. Ela até pode cantar jazz, mas ela não é. E é meio engraçado que essas coisas se estendem para, tipo, o Festival de Jazz Montreux. Se você for ver a lineup de hoje em dia do Festival de Jazz Montreux, quase metade não é jazz.


E muita gente fala isso, mas eu acho que essa questão do Kenny G vai de acordo também com o que eu falei do Miles Davis. O Miles Davis viu todo aquele processo, que ele viu o simples, tocando no Woodstock, segundo ele, e queria se adaptar a essa linguagem, porque ali está o dinheiro.


O músico também tem que pagar a conta. Então acho que é um pouco disso, querendo ou não. E se adaptar um pouco ao que o ouvinte quer, né? Porque, beleza, você pode pegar o álbum  Blue Train, sei lá, o Giant Steps, o... O Love Supreme já é mais famoso, mais para o Love Supreme ou até o Ascension, que é free jazz, é super cabeçudo esse álbum.


Mas a galera vai querer ouvir o quê? Então, lá que ele termina o sentimento à música, ele quer ouvir o My Favorite Things. Porque são os álbuns mais comerciais, né? É a cultura de massa, não tem muito como escapar. Mas eu não sei dizer com 100% de clareza por que foi parar lá. Mas eu acredito que seja por conta disso.


Não sei responder a sua pergunta. Mas eu entendo esse descontentamento, eu também fico um pouco irritado quando isso acontece. Eu fico muito chateado quando alguém fala pra mim, tipo, ah, você toca jazz? Kenny G? Não, não. Kenny G? Não, porra. Kenny G? Não, caralho. Não é assim, porra.


Mas eu acho que é um pouco disso, assim. É chateia, não tem como não, mas é até como se chegar pra alguém e falar, pô, você gosta de ouvir rap? E é tipo o quê? Marcelo D2? Marcelo D2 é, mas, mano, não é, tá ligado? É o mesmo conceito, assim. 


R: Perfeito, perfeito.


M: Mas vale frisar também que tem que ter respeito ao Kenny G, pra tudo que ele faz, assim, lógico, aí opinião pessoal, eu não sou fã do Kenny G, mas ele é um artista como qualquer outro e que vendeu vários e vários discos. É o mérito dele. E ele, tecnicamente, não tem muito o que falar dele, assim, é mais como expressão artística, e realmente é de se questionar, tipo, do que que a audiência foi pra isso, né, mas cada um é fruto do seu tempo, né, não tem como mudar isso. Mas, para as pessoas que falam que o jazz acabou, o jazz morreu, assim como o rock, é porque falta preocupação, falta brio da pessoa querer falar, não, beleza, vamos ouvir esse negócio, e vai lá e pesquisa. Mas acho que, enfim, acho que eu consegui responder parcialmente a pergunta. 


R: Conseguiu mais do que o suficiente. E agora eu vou fazer o encerramento, que é uma pergunta muito, muito interessante, porque ela não tem uma resposta certa. Aliás, quase nenhuma delas tem, e eu quero que você fique à vontade pra responder e tomar o tempo que você precisar. O que é o jazz pra você? O que é o jazz pra você?  


M: Pô, cara, eu acho que essa é a pergunta mais difícil, assim, de se responder, assim, eu diria que o Daniel Daibem é um jornalista filósofo e, na minha opinião, ele é um dos maiores comunicadores brasileiros de jazz, assim, que tem. Ele fala que jazz é um jogo, é uma regra, né, então é uma mistura de regra com conversa, assim. Então, tipo, você vai apresentar o jogo, aí transferindo para música o tema, então, sei lá, você vai tocar altos livres, que eu acho que são os temas mais famosos que tem.


Ou sei lá, ou até a gente pode adaptar pra, não sei o que, Garota de Ipanema. Garota de Ipanema é o tema, é o assunto da conversa. A gente vai apresentar o assunto, que é o Garota de Ipanema, e vamos começar a discutir sobre esse assunto. Ou seja, vai começar a conversar e vai começar a improvisar e a escolar, porque o jazz é quase como se fosse uma conversa, assim, né. É improviso pra caramba, né. Então, você vai chegar lá e vai falar o que você acha.


Ah, eu acho isso, papapá, papapá, papapá. E assim como na conversa, onde você fala um negócio e eu respondo, e às vezes eu até falo e você depois volta com a palavra, isso acontece igualmente no jazz, né. Eu falo que eu não sei tocar pop direito, que eu me adaptei à linguagem do jazz, que eu falo que o jazz é uma música horizontal. Eu realmente não sei como eu posso descrever isso, mas na minha opinião é uma música horizontal, macroscópica, enquanto o pop é vertical e microscópico. Eu não sei como eu vou descrever isso sem ser desse jeito. Mas, não sei se faz sentido também. Mas, eu acho que é isso, né. Essa conversa é a regra do jogo. Você apresenta o tema, debate sobre esse tema e no final você volta com esse tema. Esse é o jazz clássico. É dialética. E aí os debates podem se dizer que é um improviso, né.


Então, vai rolar... Esse é o jazz mais clássico padrão, assim, se eu vir. Mas aí, agora, realmente adaptando isso para o jazz, aí, por exemplo, você vai ter o tema. Então, Garota de Ipanema, Autumn Leaves, Things You Are, sei lá. Você vai apresentar esse tema, uma ou duas vezes, vai depender. E aí você vai começar os improvisos. A sequência clássica, se for um quarteto, vai sax, piano, baixo, batera. Solista primeiro, depois o piano, depois o baixo, depois a batera. E aí a batera. Ou ela sola sobre o chorus, sobre o tema. O nome chorus também vai por conta da história do jazz. A galera, quando começava a tocar, tocava os temas da Broadway. Os temas da Broadway não tem verso, refrão, não tem música off-take, inclusive. É tudo um negócio só, assim. É um tema que nem a gente chama. 


Aí o baterista ou ele improvisa nesse tema, como se fosse todo, como qualquer outro instrumentista. Ou o que ele faz, que a gente chama de trade, de troca em inglês. Que aí o solista toca os quatro primeiros compassos e o baterista responde com os quatro compassos seguintes. E por aí vai. Pode ser quatro, oito, dois compassos, vai depender de cada arranjo. Esse é o jazz clássico. Tipo, o jazz standard que a gente fala que se vê tanto por aí. Mas... Mas é muito difícil falar pra você o que é jazz.


Eu acho que se ela tem o lance da criação e do diálogo. E o lance da momentaneidade e desse lance efêmero, assim é jazz. Tanto que, se você toca duas bandas que tocam exatamente igual, a mesma música, a mesma coisa, com os mesmos solos. Uma dessas bandas não estava tocando jazz, estava tocando outra coisa. Isso faz sentido. Porque não é que o jazz precisa ter cinquenta mil minutos de improviso e tal. Mas ele precisa desse lance não pré-estabelecido. Falar e ter o negócio na hora. Lógico que na prática, em gravações, muitas vezes não é assim. O Pat Metheny costuma compor seus próprios jazzes antes de gravar.


R: Mas... Você acha que o amor é jazz? Essa é pra falar pra sua namorada. O amor é jazz? 


M: Pode ser também como pode não ser. Pode ser uma expressão de raiva ou descontentamento. O Max Roach, o John Coltrane, eles eram grandes ativistas. Principalmente o Max Roach. O Max Roach, ele foi casado muitos anos com a Abbey Lincoln. E ela era uma grande ativista lá. Você tem um monte de expressões da gente chegando. Coltrane tem uma dessas aí que foi em homenagem a um ataque que teve, acho que uma igreja. Algum negócio assim. Não me lembro o nome. Posso chamar também se quiser. Mas... O jazz é quase uma língua, uma linguagem. 


R: E um estilo de vida. 


M: Pode-se dizer que sim. Mas aí é um pouco de breguice no discurso.


R: Mas aqui nós todos somos bregas. 


M: Exato. Mas se fosse... Se a gente estivesse no elevador e você perguntasse pra mim e eu tivesse que explicar o que é antes de chegar no térreo, eu iria nessa explicação de que o jazz é uma música horizontal enquanto o pop é uma música vertical. Digamos que os erros também são mais atentos no jazz do que no pop, assim, tocando. E é isso. Mas o jazz não pode ser qualquer coisa. E eu acho que quanto menos você acha o que é jazz, mais você sabe o que é jazz também. Acho que o Louis Armstrong falou disso aí. Eu não sei dizer se ele realmente falou isso, mas eu concordo com essa frase. Perfeito. Eu acho que é isso. Senão eu vou acabar sendo prolixo e acabar dizendo a mesma coisa que eu falei. Mas espero que tenha ajudado. Mas não tem uma resposta certa. Jazz pode ser uma coisa para você e para todo mundo diferente.


R: Exato. Duas coisas. Por isso que eu perguntei o que é jazz pra você e segundo, isso aqui é igual poesia. E o texto vai ser também uma prosa poética ou uma poesia em prosa, sei lá. Depois você vai ver isso. E o caos e a subjetividade importam muito. Eu já te falei isso no começo quando eu dei a letra pra você do que eu queria fazer em relação a isso. Cara, eu vou responder a minha primeira pergunta sobre o que é o jazz. 


M: Boa.


R: Mas não vou responder. Uma vez perguntaram pro Rubem Braga, o nosso maior cronista brasileiro. Perguntaram pra ele. Afinal, Rubem Braga, o que é crônica? E ele respondeu com a seguinte frase. Ora, se não é aguda, é crônica. Isso é o jazz. O jazz é crônica. 


M: Sim, faz sentido. Isso é engraçado também. Você falou de literatura e aí falando de jazz, eu acho que vale apenas botar na entrevista do livro social do jazz do Eric Hobsbawm. Eu acho que ele realmente, se você quiser entender sobre, você tem que ler esse livro.


R: Eu não sabia que o Eric Hobsbawm tinha um livro sobre jazz. 


M: Ele tinha, ele era muito fã de jazz e tem um capítulo lá logo no começo que ele tenta explicar o que é também. Vale a pena dar uma lida. Ele é bem assertivo para quem o lê. Eu lembro que na época eu li, depois eu li, depois um tempo e fazia sentido o que ele falou.


Eu não lembro agora realmente o que ele falou, mas vale a pena ler . E eu acho que também o lance do, a concepção do que é jazz vai de acordo com o tempo também. Então se você pegar o swing, o jazz era a música tocada em baile por big band para a galera dançar. Mais pra frente você vai ver o hard bop e era uma música de músicos para músicos, onde a técnica era o negócio mais importante assim. Tanto que aí a galera fala que era muita nota, ninguém nota e pouca nota. Daí pra frente veio essa piada assim. 


R: Uma boa piada. Uma boa piada, uma ótima piada.


M: Aí teve o bebop, o hard bop também segue essa linha. Aí veio o post bop, que aí ele já tem, John Coltrane é post bop pra caramba nos álbuns mais famosos dele, mas o Coltrane tinha gravado antes hard bop. 


Aí você tem o cool jazz, o west coast jazz também. Eu não posso divulgar esses dois nomes, né? Que aí realmente é o jazz que a gente fala que é o jazz branco, é o jazz elevador e tal. Mas tem muita coisa foda nesse jazz. O Take Five lá, que é a música mais famosa, que eu não aguento mais ouvir essa porra, é cool jazz. O Dave Brubeck é cool jazz. O Bill Evans também, que na minha opinião foi o melhor pianista de jazz da história. Ele essencialmente tocava cool jazz.


R: Eu amo o Bill Evans também. Ele é um dos meus favoritos. O Bill Evans é animal.


M: Eu acho que ele, o Keith Jarrett e... Ou o Chick Corea ou o Brad Meltdown. O Brad Meltdown é um excelente. 


R: O Herbie Hancock era pianista também, não era? 


M: O Herbie Hancock era pianista, sim. Ele começou no 2º Quinteto do Miles, que eu acho que talvez seja um dos grupos, ou se não, o maior grupo de jazz da história. Eu acho que talvez um dos mais importantes, ou o 4º Quinteto do John Coltrane ou o 2º Quinteto do Miles. Que, se você não conhece muito, vale a pena ouvir. É meio cabeçudo. Então, mas vale a pena muito escutar todos os discos que eles gravaram.


O Miles Live e... Ah, esqueci agora o nome. Que tem no... Eu acho que é no solo de Four. Essa foi uma lenda que me contaram.Que teve um cara que dá pra ouvir que ele teve um infarto no meio da plateia. Dá pra ouvir alguém gritando. Eu vou caçar isso direito, mas eu ouvi essa história aí na faculdade.


R: Não, se você puder... Sabe que eu tenho um amigo que é viciado em Grateful Dead. E essas bandas de rock que prezam pelo improviso. E o Grateful Dead é a maior delas. E eu passei pra ele o outro dia que eu estava aqui em casa. Porque eu raramente paro em casa, mas um dia eu fiquei em casa o dia inteiro. E eu fiquei escutando jazz o dia inteiro. E eu caí nesse loophole no Sessions do On The Corner. Que é um álbum bem menor do Miles, né? Em relação ao comercial, etc. E eu fiquei hipnotizado com algumas músicas. E eu mandei pra esse cara. Ele é guitarrista, ele manja muito na guitarra. Não é nenhum músico profissional, mas é um grande guitarrista no meio jurídico. E aí eu passei pra ele. Cara, eu só mandei uma frase pra ele. “Fortes jams aqui”. Só isso. E ele adorou, ele ficou super empolgado. Eu acho que a música tem a ver com isso, né? Esse contato, essa troca.


M: Tem que ter, não tem jeito. Mas enfim. Aí nessa época também começou a ter o free jazz, né? Eu acho que Ornette Coleman era o cara dessa época, né? Então naquela época era realmente uma experimentação total. Desenvolvimento total com as normas já estabelecidas. E também logo um pouco depois teve o Fusion. Mas também nessa época teve a junção com o jazz europeu também. E aí vale a pena citar o trabalho da ECM. A ECM é uma gravadora, sei lá, da Escandinávia ou do norte da Europa. Mas ela é muito importante para o exportar jazz. E os brasileiros já gravaram lá. O Nenê, que acho que é um dos maiores bateristas da história do Brasil. Dá aula lá na faculdade também. O Hermeto. E o Keith Jarrett, que é esse pianista, gravou muitos álbuns pela ECM jazz. 


Inclusive tem uma história. Um dos meus álbuns prediletos e um dos mais bonitos da história chama-se Melody at Night With You. Acho que esse é o nome. É um álbum preto e branco do Keith Jarrett. Que é esse pianista. Ele tocou com o Miles, tocou com um monte de gente. Mas ele também gravou com o trio dele. Ele é muito importante para a história do jazz. Como é Melody? Deixa eu pegar aqui o nome certo só para não te passar a informação errada. Melody at Night With You. É isso aí. Keith Jarrett. É isso aí. É, então. É um álbum preto e branco, né? E é um álbum de piano solo. Esse álbum tem uma das histórias mais fodas da vida.


Esse Keith Jarrett aí, ele teve uma doença do prodígio, sei lá. E aí ele não conseguia sair da cama sem mexer. Eu não sei exatamente como é essa doença. Mas era um negócio que ele não conseguia sair da cama. Ele tinha que ficar parado. Ele não conseguia mexer nenhum músculo. Estava 100% esgotado. E ele passou acho que um, dois anos nesse pique. E aí era véspera de Natal. A família dele... Ele morava num sítio perto de Nova York. E aí a família dele chegou e falou: “Vamos sair para comprar os presentes. Você fica aí”.


Aí ele ficou aqui. Ele falou, pô, o que eu vou dar de presente para a galera? Aí ele foi se arrastando do quarto dele até a... Era como se fosse uma edícula assim. Então ele saiu de casa em dezembro para os Estados Unidos. Na neve e tal. Se rastejando assim. Colou lá no salão de piano. Botou para gravar assim. Sentou no piano. E depois de dois anos ele tocou um dos standards. Um atrás do outro direto. Um take só. Parou de gravar. Voltou para a cama. Depois pediram para ir lá e pegar a gravação. E aí, na minha opinião, é um dos álbuns mais bonitos da história. É foda. É de chorar só de ouvir ele tocar as primeiras notas. Especialmente… Acho que é a última canção do álbum. E puta que pariu. É foda. Ele tem um jeito de tocar. Enfim. 


E aí a capa desse álbum, que não dá para ver direito. Mas é a foto que ele tirou da janela do quarto dele. Que era a única coisa que ele via durante esse tempo. Então, essa história me pega demais. É foda. 


R: E ele morreu ou ele está vivo? 


M: Ele está vivo. Tem 79 anos de idade. Mas ele parou. Ele teve um AVC e parou. Mas teve várias histórias. 


Se eu não me engano, não foi o Jim Hall. Mas foi o outro... Foi o Jim Hall ou o Pat Martino? Ele teve um AVC e teve que aprender a tocar guitarra de novo. Então, tem várias histórias do jazz que é foda pra caralho. Difícil de ouvir. Mas é isso. A ECM é muito importante também. Ela é a grande responsável por ter essa vertente do jazz europeu.


Depois, no começo, teve o Fusion, né? E aí teve essa coisa que eu falei de misturar os gêneros. E daí pra frente foi algo baseado no jazz fusion, né? E aí mais pra frente, década de 90 pra cá, teve o jazz moderno. Teve essa volta do instrumento clean, mas não só isso.


E acho que no meio da década passada, pra frente, sim, está tendo um novo gênero que a gente vai falar mais pra frente. Vai nomear, né? Eu sinto que o jazz está indo pra esse caminho. Acho que é isso que eu tinha pra falar sobre o que é jazz.


R: E você disse tudo. Tudo e mais do que o suficiente. Bom, eu acho que, se você concordar comigo, podemos encerrar por aqui a entrevista.


M: Tá bom. 


R: O programa Provocações do Antônio Abujamra, você conhece? Do TV Cultura? 


M: Conheço. 


R: Ele terminava, ele falava, ah, “o que é a vida?”, aí a pessoa respondia e tal. Aí a pessoa respondia, ele levantava, e dizia “vou dar um abraço que a única coisa falsa aqui do programa é o abraço”. Falava uma coisa assim; como a gente tá online, não posso fazer isso com você, fazer essa piada em homenagem ao Abujamra, mas eu vou encerrar aqui a gravação. É isso. Muito obrigado. Um abraço!


Fim da entrevista


Me lembro, agora, meses depois dessa entrevista, da definição impecável do que é o jazz, pelo inigualável Charles Mingus: “Eu não sei. E eu não me importo”. 


São Paulo, 25 de fevereiro de 2025.

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