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Pira, Paranóia ou a poesia de São Paulo de Roberto Piva e Cláudio Willer

  • Renan Padilha
  • 3 de nov. de 2024
  • 9 min de leitura

Ilustração por: Juliana Brito.

I. O século XXI me dará razão


Na manhã do dia 25 de outubro de 2024, uma frase ecoou em minha mente, por mero acidente, acaso e surpresa do algoritmo das redes sociais; de uma forma profética e transformadora, como aquele tipo de experiência mística que se estende para além dela mesma. Uma viagem para Machu Picchu, o primeiro banho de mar, o seu primeiro beijo com quem se realmente ama, um pedido de namoro improvisado em uma quarta-feira qualquer. Pois bem, a frase veio de um dos meus heróis pessoais, e herói para quase todos aqueles que admiro e respeito (moral e intelectualmente): Jack Kerouac, o pai (filho e Espírito-Santo?) da Geração Beat (maiores explicações a posteriori). “A única verdade é a música… Música se mistura com o universo das batidas cardíacas e nos esquecemos das batidas cerebrais” (tradução livre, feita por mim), do seu livro Anjos da Desolação, de 1965.


O velho Kerouac teve muitas oportunidades de transmitir mensagens proféticas e transformadoras na humanidade. Seu livro, On the Road (1957) transformou a literatura e a juventude ocidentais, muito como os modernistas haviam chacoalhado o planeta no começo do século XX, e o restante do segundo milênio (e o século XXI) deu razão a Jack. Sem ele, não haveriam os hippies, o ambientalismo, quiçá, a própria contracultura no geral. Claro, nada de determinismo histórico, mas são cadeias de eventos muito intrínsecas que mostram uma sucessão de eventos histórico-político-culturais (e filosóficos!) que interligam os acontecimentos (e outros, por óbvio) citados. Como a velha máxima popular da crítica musical dos últimos 50 anos, de que quase todos aqueles que compraram o primeiro álbum do Velvet Underground, em 1967, mudaram (ou tentaram mudar) o mundo (da música), de alguma forma.


Na mesma manhã, de 25 de outubro de 2024, terminei, pela segunda vez em minha vida, o livro Paranóia (1963), de Roberto Piva, “o maior poeta beatnik brasileiro”. Talvez o primeiro, talvez o último. Talvez o único. Quem se importa? Mas Piva, quem é ele? Um dos maiores “rebeldes e malditos” das últimas gerações (de toda a tradição poética, de Dante e Rimbaud até Jeferson Tenório), Roberto Piva é um verdadeiro provocador, à la Gainsbourg, um grande “poeta na cidade”, não um “poeta da cidade”, como muitos o descrevem. Criado em fazendas e zonas suburbanas do interior do estado de São Paulo, foi para a capital, a metrópole, “a melhor cidade da América do Sul” para estudar e nunca mais saiu daqui. Dizem até que detestava São Paulo, mas detestava mais ainda sair da “cidade-sucata”.


Ora, não é meu trabalho aqui fazer um perfil do poeta. Ou não um perfil detalhado. A Revista Cult, a Companhia das Letras, a Editora Globo, seus críticos, leitores e amigos já o fizeram exaustivamente. Até o próprio Cláudio Willer já escreveu, descreveu, escrutinou, dissecou, analisou e prostituiu o Piva! Um texto falando para ler outros textos! Até parece um ensaio de um professor chato de qualquer curso universitário por aí. Portanto, sem muitas delongas no perfil do poeta.


II. Um poeta na cidade


Quando Piva começou suas aventuras sócio-poéticas, no final da década de 50, a Geração de 45 do modernismo brasileiro (nomenclatura segundo a crítica, patética) dominava o mercado editorial e as tendências literárias. Então, o que Piva & companhia (e que companhia! além do citado Willer, o Jorge Mautner, por exemplo, andava com essa galera) queriam explodir o verso e transar com a rima, um pouco como os modernistas o fizeram, em 1922. Foi aí que um farol poético pousou em São Paulo. Alguma tia endinheirada desses meninos-poetas, trouxe vários exemplares do que havia de mais novo na literatura norte-americana. Lawrence Ferlinghetti, Allen Ginsberg, William Burroughs e o já mencionado Kerouac!


Amor à primeira vista! Mas muito mais! O que esses autores beatniks fizeram na literatura paulistana da década de 50 e 60 não foi páreo para o que esses mesmos paulistanos fizeram para a literatura (underground, udigrudi) nacional nas décadas seguintes; ouso até dizer, como dizia o Willer, que os cursos de Letras ainda falham um pouco em aceitar e assimilar a importância dessa gente para a literatura brasileira em constante transformação. Pois bem, foi bem aquele papo do Velvet Underground, que falei; David Bowie comprou o disco do VU, Iggy Pop, Talking Heads, e vários outros. Só olhar o que veio depois e como o mundo da música mudou depois disso. Você acha que a Madonna teria lançado “Like a Virgin”, nos anos 80, se um maluco como o Bowie não tivesse se maquiado todo e colocado “roupas femininas” (!) no final da década de 1960, começo da década de 1970? O mesmo vale no Brasil: um Cazuza da vida não teria vingado se o Caetano, Mutantes, Gil e todo essa galera não tivesse exposto a caretice da crítica no final da década de 1960.


III. Praça da República dos meus sonhos


Mas, afinal, o que há de tão especial na poesia desses caras? Vamos lá, a poesia está em São Paulo, eles são meros antropólogos.


Eu os conheci por recomendações, após mergulhar de cabeça em águas bem profundas na literatura beatnik, das quais nunca mais saí. Fui só conhecer eles, verdadeiramente, após dois eventos cruciais em tempos recentes de minha vida. A morte do querido Cláudio Willer, em janeiro de 2023, foi um deles. O segundo: estava eu, meu advogado e um poeta-louco da Vila Buarque, os três num bar na Vila Madalena. Eu e meu advogado estávamos às vésperas, poucos dias, de embarcarmos numa viagem à Nova York e Boston, por conta de uma congresso de Direito e Relações Internacionais, o qual conseguimos a aplicação e bolsa para tal. Certo, o tal poeta, em algum momento daquela tarde, nos declamou, em plenos pulmões, “Praça da República dos meus sonhos”, do Roberto Piva. E aquilo mudou tudo.


Que o diabo carregue esse poeta! Não o Piva, de certo, o outro! Mas o filhadaputa sabia de algumas coisas relevantes, apesar de ser um dos maiores canalhas que conheci. Comecei a matutar aquele poema no mesmo dia. Dois dias depois, depois de um acontecimento extraordinário em minha vida também, no Parque Augusta e aquela boa e velha dos Beatles “Lucy in the Sky with Diamonds”, escrevi um poema intitulado “Eros e Psiquê na Consolação dos meus sonhos” (entrem contato com o editorial, caso queiram receber esse poema). Ali eu entendi que as coisas haviam mudado na minha cabeça. Um parque de diversões da cabeça! Um mafuá das ideias. A cereja do bolo, da história, foi a minha tentativa miserável de fazer uma tradução simultânea (português-inglês) dele para os meus amigos gregos no tal congresso em Boston, no final daquela mesma semana. A magia do álcool e da literatura.


IV. Poema-porrada


E que porrada! O Piva é um representante de um tipo de poeta que tem as mesmas aplicações e tendências que um gênio como Maiakóvski. Poema-filme, imagens recortadas e evidenciadas na cadência textual. De um jeito muito lisérgico e inventivo, sob o cenário de São Paulo. Ele mesmo disse que sua obra era algo como “futebol, gibi, desenho animado, Hegel e troca-troca”. Percebam, no referido poema “Praça da República dos meus sonhos”, os primeiros versos: “A estátua de Álvares de Azevedo é devorada com paciência pela/ paisagem / de morfina / a praça leva pontes aplicadas no centro de seu corpo e crianças brincando / na tarde de esterco / Praça da República dos meus sonhos [...]”.


A tal estátua de Álvares de Azevedo foi roubada por estudantes de Direito do Largo de São Francisco, em 2006. Ela foi, veja só, devorada pela paisagem de morfina! Na época do velho Piva, a Praça da República era o que havia de mais moderno, o Centro-Novo, a Galeria Metrópole, o Hotel Jaraguá, a rua Barão de Itapetininga. Hoje temos o fantasma de tudo isso. Talvez seja essa paisagem de morfina, entendem? Só quem já foi à República de madrugada sabe o que estou falando. E olha que nem sou de São Paulo, mas o flaneurismo pelas ruas do Centro é caro para mim como foi caro para o Piva.


Essa é a magia desse cara. A cada estrofe, a cada verso, cada palavra, cada imagem evocada, cada referência, é como se você andasse por São Paulo com um guia mais que especial. Um guia espiritual, com uma cabeça que funciona a dez mil quilômetros por hora! Um Hunter Thompson do Centro! Pure Gonzo. Mas 100% poético, quase nada jornalístico.


E você tem de tudo. E tudo no seu primeiro livro. Só me contar, o que você quer ver? O que te dá tesão? Vamos, me conte, que eu lhe mostro na paranoia alucinante que pode ser a viagem com Roberto Piva! Quer ver o fantasma de Mário de Andrade vagando pelo Parque Ibirapuera, em “É impossível que não haja nenhum poema teu / escondido e adormecido no fundo deste parque” (“No Parque Ibirapuera”). Quer ver o Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) referenciado numa visceral fúria contra o conformismo social (até o lindo Oscar Wilde entra na roda), em “Poema-Porrada”: “Eu estou farto de muita coisa / não me transformarei em subúrbio / não serei uma válvula sonora / não serei paz”; continua “uma noite destruída cobre os dois sexos / minha alma sapateia feito louca / um tiro de máuser atravessa o tímpano de / duas centopéias / o universo é cuspido pelo cu sangrento / de um Deus-Cadela” e, para coroar a santidade: “o girassol de Oscar Wilde / entardece sobre os tetos / eu preciso partir um dia para muito longe / o mundo exterior tem pressa demais para mim”. O resto é música, certo, Jack?


V. Anarquismo místico


No dia 13 de janeiro de 2023, eu estava sozinho na casa de meus pais, em Campinas (estado São Paulo) e recebi uma notícia que, não me fez chorar, mas me deixou perturbadíssimo. Um dos nossos maiores intelectuais da ars poetica, seja em sua fazedura ou em sua pesquisa acadêmico-mística (sabiam que o Piva era formado em Sociologia?), Claudio Willer, deixou este plano, aos 82 anos. Viveu bastante, nunca o suficiente. Não teve uma vida tão boa assim, passou por perrengues que beiravam a fronteira entre o humano e o desumano. Sobreviveu os seus últimos anos por conta de favores, nem sei como ou quanto comia, coitado… E um cara desse, desses caras que andavam por São Paulo com o Piva, que revolucionou a poesia há 60 anos; podia ser seu vizinho!


Quem diabos, autor maldito, é esse Claudio Willer?! Eu respondo prontamente, leitor imaginário! Eu não o mencionei (sem maiores explicações) de propósito! O velho Willer era dessa mesma galera do Piva, mesmas ideias e aplicações. Os degenerados que usavam LSD para ler Dostoiévski e iam para São Tomé das Letras tomar ayahuasca para entender o xamanismo indígena em sua essência. Se eu te contar que conheço uma dúzia desses, hoje em dia, mas nenhum deles está movendo um centímetro da bunda pela literatura e cultura nacionais. Talvez meia dúzia deles. Algo assim. Enfim, o Willer era um cara diferenciado.


Junto com Piva, lendo seus poemas, você pode ter uma aula de toda literatura ocidental (e alguma literatura oriental também!) em menos de uma dezena de poemas desses autores. Um texto que leva a um texto que leva a um texto, que te abre a cabeça para sempre. Trabalhou muito para e pela cultura. Tradutor, palestrante, professor, funcionário da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo em meados dos anos de 1990. Assumidade. Sociólogo, com pós-graduação em Letras na USP. Ele certamente foi uma pessoa que viveu grande parte do século XX e a quem o século XXI já lhe deu razão.


Bom, se até agora nenhum de vocês me deu essa razão e credibilidade, em apostar tantas fichas de entusiasmo sobre dois homens brancos e velhos, eu não os culpo. Mas saibam que do meu lado estão Ana Cristina César, Chacal, Cacaso, Torquato Neto, Itamar Assumpção, Hilda Hilst, Wally Salomão, Paulo Leminski e tantos, tantos outros…


VI. Pira, Paranóia


Por último, tirando o pé do acelerador, deixo com vocês um poema que escrevi, na ocasião da morte do velho Willer, com o título homônimo a este capítulo:


“bomba, bombástico, bombando!

beat, beat, beat,

bate como rebate.

mas repete, no ciclo.


bat,

bat-macumba

estupefato.

bate.

e sai


sai de cena, entra em cano.

não me olhe sob este plano!

mas lhe garanto os maiores esforços, explosivos e sagazes,

capazes de suturar essa ferida viva.

estraçalhada.

a rua onde se repartem os esforços tardios.

as ruas onde bêbados andam sob binóculos vazios.


a rua está vazia.

ou é paranoia?


a rua está deserta,

como os desertores

desestruturados de dia.


a rua está sem nada.

sem poesia ou perda.


a bomba explodiu e surtiu efeito.

com batidas drásticas em diversos corações.

de Manhattan até o Vale do Anhangabaú.

você ouviu.

você ouviu!


no meio de marginais e marginálias,

as magnólias, flower power e colheitas,

se encontram os prédios permeados.

jaquetas de couro e batas indianas.

permeados! impermeáveis!

lotados de gente lotados de poesia.

o tráfego intenso me coloca sob

o mundo perfeito semi-abandonado da 23 de Maio.


caio perplexo no submundo submisso.

de formato intenso e verdadeiro.

como um poeta grego,

que escuta o povo.

como um poeta cego,

que enxerga tudo.


a rua está rua.

asfaltada.

despovoada.

a rua está nua.


a rua, na verdade, é um paraíso.

a rua é assim mesmo.

e você sabe disso.

ah, você sabe


Campinas, janeiro de 2023


Leiam Piva. Leiam Willer. Andem por São Paulo de olhos abertos e de olhos fechados. Depois me contem como foi. Ou melhor, não os leiam! Transem com eles. E me contem como foi. É isso que quero saber.

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