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La Haine: a representação da espacialidade e do desejo no cenário urbano

  • Letícia Fumes
  • 24 de fev.
  • 9 min de leitura

Ilustração por: Juliana Brito
Ilustração por: Juliana Brito

Entre os amantes do cinema, é quase unânime que todos conheçam a famosa cena do clássico francês La Haine, em que Vincent Cassel (intérprete de Vinz) simula uma arma com as próprias mãos e aponta-a na direção de um espelho que reflete sua própria imagem. Quase uma pista sobre a trajetória do filme, haja vista que, quando possuidor de uma arma verdadeira, Vinz de fato fere apenas a si e aos seus, socialmente, semelhantes. Esse recorte popular da obra nos concede uma representação facilmente identificável do sentimento de insatisfação que paira sobre os personagens principais.


Em suma, o longa (1995) conta a história de três amigos, moradores do subúrbio de Paris: Vinz (judeu), Hubert (negro) e Saïd (de ascendência árabe). A pertinência da obra, para além de sua construção propriamente artística, repousa na revelação da “cidade luz” enquanto um palco de violência, segregação e ausência de perspectivas para os renegados socialmente. A tríade cultural simbolizada pela ascendência de cada um dos personagens evoca uma pluralidade factual, porém intragável, para uma França que se negava (e ainda se nega) a recepcionar sua face menos eurocêntrica e ocidentalizada. Postas essas condições, fato e negação, a relação a ser estabelecida não havia de ser outra a não ser a de um conflito estrutural, manifesto em diferentes, porém articulados, níveis de opressão socialmente experienciados.


O diretor do filme, Mathieu Kassovitz, apoiou-se em um acontecimento real para desenvolver o filme: o assassinato, em 6 de abril de 1993, de um jovem imigrante que estava custodiado pela polícia. Em meio a uma onda de protestos, que evocavam a instabilidade sociopolítica verificada entre a força policial e a juventude suburbana, igualmente violentada pela situação, Mathieu viu-se tomado por um senso de urgência em produzir o longa, que representa, para além de uma resposta, um olhar atento, em caráter de denúncia, sobre a realidade urbana parisiense. Na ficção, o conflito emerge, paralelamente à realidade, após um colega dos personagens principais ter sido brutalmente abordado por um policial e estar hospitalizado.


As complicações urbanas elucidadas na obra, cujo maior referencial é o próprio contexto da época, apresentam-se em diferentes faces, que revelam desde os aspectos materiais relativos a esse espaço violento, orientado por e para uma sociedade que fere com as próprias mãos aqueles que estejam, forçadamente, destinados ao setor periférico, até o sentimento de insatisfação perene vivenciado por esses personagens, sob um véu que, escondendo suas necessidades mais sutis, oprime seus desejos mais potentes. La Haine é, portanto, complexa por essência e essa característica, que parece quase inevitável, posta as circunstâncias reais da problemática exposta, abre margem para um oportuno diálogo com outra referência francesa, o autor Henri Lefebvre.


Henri Lefebvre foi um filósofo francês do século XX que dedicou quase que a totalidade de sua obra a uma reflexão crítica sobre a cidade, mais especificamente, sobre o espaço urbano. Lefebvre aponta, sobretudo, para a sociedade capitalista e industrializada responsável por essa urbanidade adoecida, destituída de memória e de referenciais. Para tal, o autor se vale de inúmeras tríades que constroem seu pensamento e incorporam sua tese. Pensando no objetivo do texto —- traçar um singelo paralelo entre os conceitos do filósofo e os elementos do filme — uma delas emerge com destaque: o espaço homogeneizado-fragmentado-hierarquizado. É oportuno ressaltar que, de modo algum, a breve explicação aqui relatada pretende esgotar o posicionamento de Lefebvre, cuja complexidade requer muito mais tempo e, valendo-se do vocabulário do autor, espaço para ser compreendida com o rigor que lhe é cabível.


Em La Haine, os personagens principais vivem em subúrbios (em francês, chamados banlieues), que, mesmo localizados em uma capital global como Paris, são marcados por uma política habitacional inconsequente, flexionada a conceder moradias padronizadas, pequenas e precárias, circunscritas por diminutas ou até mesmo nulas infraestruturas de lazer, cultura, educação, saúde etc. O filme adentra e registra essa espacialidade sobretudo em sua primeira parte, na qual todo o desenvolvimento está situado no bairro de origem dos personagens, cujas poucas oportunidades de lazer, por exemplo, realizam-se como uma válvula de escape, em locais improvisados e sempre pressionados por padrões sociais que consideram inferiores expressões culturais ali veiculadas, como o hip-hop. Para Lefebvre, esse espaço é homogêneo, pois não oferece aparatos dignos para os referenciais pessoais e não permite a construção despreocupada de novas memórias, pois a indiferença e uniformidade externas, verificadas na arquitetura dos banlieues, escondem, propositalmente, a pluralidade que lhe está contida.



A fragmentação, por sua vez, representa esse espaço que é parcelado e vendido como mercadoria. Isto é, mora-se na intermediação entre o local, propriamente, e seu valor de troca, que depende intrinsecamente das estruturas materiais e simbólicas da região, que a tornam mais ou menos acessível. Em La Haine, tal movimento de quebra, ou de compartimentalização, revela-se no contraste entre a primeira e segunda parte da história: o deslocamento da área dos subúrbios para a região central de Paris, contentora de grandes e luxuosos apartamentos, provida de paisagens e edificações mundialmente reconhecidas, das quais o consumo é mediado, trivialmente, por altas contribuições financeiras. E não somente: usufruir dessa parcela do urbano requer, para além de dinheiro, uma espécie de poder social simbólico, que repousa na determinação de quais elementos culturais são legítimos e quem possui a legitimidade para experimentá-los. Caso contrário, e que é justamente o caso do filme, a fruição (ou a mera tentativa de) desse espaço ocorre de modo ilegal, escondido na persistência da noite e intermediado pelos telhados da cidade, como realizado por Vinz, Hubert e Saïd.


Essa objetiva financeirização da moradia, que é um direito social — ainda que em tese — contribui para a construção e exposição do terceiro pilar da tríade lefebvriana, talvez o mais evidente no filme (haja vista, por exemplo, o fato de que Vinz busca uma espécie de “reequilíbrio social” com o plano de vingança que o conduz na trama) que é a hierarquização do espaço urbano.


A trajetória conturbada de Vinz, Hubert e Saïd nos defronta a um cenário de violência policial e de isenção de responsabilidade por parte do Estado, que não se propõe a oferecer-lhes o mínimo de dignidade, dado que não vê em seus reflexos a figura de um cidadão. Além, é claro, da violenta desproporção na distribuição dos recursos econômicos e todos os demais obtidos por meio deles, elucidada na construção do filme, ainda que de modo mais sutil quando comparada à esfera da agressão movida pelas forças de segurança. Tal representação vetorial do poder na sociedade urbana descrita por Lefebvre e representada no filme revela, ainda, como os aparatos estatais passam da esfera subsidiária para a esfera agressora quando se trata de camadas sociais mais baixas, economicamente desfavorecidas e culturalmente deslegitimadas. De certo modo, o sentimento vingativo de Vinz, que reflete a instabilidade e a angústia coletiva de seu estrato social, sinaliza uma projeção de todas as camadas de poder sócio-político-econômico decantadas em suas costas e que caracterizam um peso capaz de impedir, espaço-temporalmente, o movimento de ascensão em sua vida.


Nota-se, portanto, que parte significativa, ainda que não total, da revolta expressa pelo trio tem origem na opressão material e física verificada no cenário urbano em questão, que é movido e promovido pela disparidade sócio-econômica-política entre grupos sociais e que reconhece na repressão o único modo de contornar as expectativas, mesmo que quase simbólicas, de ascensão por parte daqueles fadados à segregação. Ademais, não somente os anseios mais exteriores, como o de vingança ou simplesmente de uma condição de vida melhor, são reprimidos, como também as necessidades (sociais) são ignoradas, estas, nas palavras de Lefebvre: 


“[...] tem um fundamento antropológico; opostas e complementares, compreendem a necessidade de segurança e de abertura, a necessidade de certeza e a necessidade de aventura, a da organização do trabalho e a do jogo, as necessidades de previsibilidade e do imprevisto, de unidade e de diferença, de isolamento e de encontro, de trocas e de investimentos, de independência (e mesmo de solidão) e de comunicação, de imediaticidade e de perspectiva a longo prazo.” (Lefebvre, p. 96, 1969)

               

Tais necessidades produzem uma espécie de expectativa no corpo social, fenômeno este que está veiculado na obra do filósofo através do conceito de desejo. No livro, A Revolução Urbana, Lefebvre argumenta que “O urbano poderia também ser definido como lugar do desejo, onde o desejo emerge das necessidades, onde ele se concentra porque se reconhece [...]” (Lefebvre, 2008, p. 158). Paralelamente, La Haine registra sentimento semelhante nos personagens, que, reiteradamente, buscam por um cenário em que sejam aceitos socialmente, sem que isso implique algo como uma mutilação de suas personalidades (como na cena em que o trio invade uma exposição artística, cujo clima era festivo, e, por uma série de inadequações, acabam sendo expulsos). Ainda que os três, sobretudo Vinz, estejam em busca de uma vingança material contra a sociedade que os oprime, há um sentimento maior que esse “acerto de contas”, há um desejo perene de integração e de pertencimento, que, se concretizado, permite aos indivíduos a contemplação da possibilidade. A cena, igualmente memorável, em que o trio muda a frase Le monde est à vous para Le monde est à nous deflagra esse anseio essencialmente incurável, dentro de uma sociedade urbana adoecida, que oscila entre pertencer e possuir, não reivindicando que o mundo lhes seja dado, mas que eles próprios possam conquistá-lo.


Em outros termos, há o que o filósofo nomeia de desejo fundamental: não vinculado às satisfações ou estruturas materiais (ocupação do espaço), como uma casa, mas sim ao cultivo de “[...] simbolismo, de imaginário, de atividades lúdicas.” Sendo o urbano o contentor, por definição, dos desejos, é viável interpretar que a revolta deflagrada no filme surge não necessariamente do desejo em si, mas, mais precisamente, do fato de que para Vinz, Hubert e Saïd — que são símbolos de uma parcela social significativamente maior —- as necessidades são, de modo perene, parcialmente realizadas e cuja incompletude repousa em uma estratégia sócio-política-econômica de segregação do acesso à cidade e à plenitude das experiências urbanas.  Por meio de uma analogia, torna-se plausível afirmar que apenas uma face das necessidades sociais expostas por Lefebvre é satisfeita para os moradores do subúrbio: abertura, aventura, jogo, imprevisto, diferença, imediaticidade, independência (aqui menos ligada à solidão do que ao abandono).


A própria montagem do filme - aqui evocada sem a menor das pretensões críticas - quase não nos permite respirar diante de eventos sequenciais que provocam tamanha asfixia capaz de mobilizar quem as acompanha entre ansiedade e paralisia. À luz do final (aqui poupado de maiores detalhes, pensando, sobretudo, naqueles que lerão esse texto antes de assistir ao longa), torna-se palpável a complexidade da sensação de deslocamento e ausência de referenciais experienciada pelos personagens. Em suma e, em última instância, a obra nos mostra que a maior das negações impostas ao trio principal é a negação da possibilidade, da prospecção, que resulta do e no cultivo artificialmente concebido de meros usuários do espaço urbano, que nada possuem além da imediatez — estão vazios de segurança, certeza, trabalho, previsibilidade, unidade, comunicação e perspectivas a longo prazo.


O traçado entre a esfera do desejo no cenário urbano e os conflitos violentos registrados no contexto da cidade, dentro e fora do filme, é problematizado de forma interessante e incisiva por Lefebvre em outro trecho de O direito à cidade, que apresento no corpo do texto com o intuito de provocar curiosidade pelo trabalho do autor e reflexão sobre a temática do filme: 


“A satisfação de necessidades elementares não consegue matar a insatisfação dos desejos fundamentais. Ao mesmo tempo que lugar de encontros, convergência das comunicações e das informações, o urbano se torna aquilo que sempre foi: lugar do desejo, desequilíbrio permanente [...] este momento (do lúdico e do imprevisível) vai até a implosão-explosão das violências latentes sob as terríveis coações de uma racionalidade que se identifica com o absurdo. Desta situação nasce a contradição crítica: tendência para a destruição da cidade, tendência para a intensificação do urbano e da problemática urbana.” (Lefebvre, p. 76-77, 1969) 

                        

Por outra perspectiva, mas mantendo-se fiel à análise até aqui proposta, voltemos à cena do espelho. Em termos de observação, esse trecho do filme é um dos poucos, se não o único, em que um dos personagens – neste caso, apenas Vinz – para e de fato dedica seu olhar a um ponto fixo, sem estar completamente desvirtuado pelas circunstâncias correntes de violência e agitação que o cercam. Ainda que esse estado de contemplação seja motivado por um ódio latente que lhe insere uma revolta persistente contra tudo, inclusive contra si mesmo e seu status social, o fato de que seu olhar esteja direcionado para um espelho pode nos conduzir a pensar na limitação imagética circunscrita a esse objeto. Em outras palavras, o espelho nada revela além do que Vinz já tem acesso, é, portanto, uma representação concreta de sua vida presa à imediatez: vê-se apenas um reflexo e não um horizonte. Em suma, cria-se a partir desse recorte uma tensão constante na história do filme, situada material e cinematograficamente no urbano, que contém os desejos e as possibilidades em ambos os sentidos do termo: comportar e reprimir.


Em síntese, tanto La Haine quanto o trabalho de Henri Lefebvre são fundamentais para que a cidade, enquanto esse conturbado cenário urbano, não passe despercebida. Esse incessante desejo de pertencer é a força motriz de um corpo social que, por vezes, não sabe qual caminho percorrer, mas decide reiteradamente não parar. Acorrentados ao agora e livres da inércia: talvez seja essa a vida de Vinz, Hubert e Saïd. Na breve análise aqui proposta, essa esfera do pertencimento corresponde, portanto, a uma espécie de elo entre a ocupação do espaço e a realização dos desejos nele concebidos (e reprimidos), ambas as ações negadas ao trio principal e àqueles por eles representados.


Fato é que o desejo fundamental, de criação e de prospecção, evocado por Lefebvre, este sim, é uma constante, ainda que negativa - posta a inviabilidade de realizá-la no plano concreto - em meio a tamanha instabilidade. Retornando a primeira cena mencionada, agora alicerçada e combinada a todos os demais caracteres do filme e às terminologias do autor, o urbano desponta como algo que sempre será incompleto, conflituoso e eternamente desejável para aqueles que, estrutura e espacialmente, são relegados a observarem apenas o próprio reflexo. 


Referências Bibliográficas 

LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Ufmg, 2008.

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 4. ed. São Paulo: Documentos, 1969.


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