Ande de Skate e destrua: skate, transgressão e Olimpíadas
- Lucas Martins
- 12 de out. de 2024
- 8 min de leitura
Da praça Roosevelt às Place de la Concorde. Como o skate foi de brincadeira marginalizada a esporte olímpico e, mais do que isso, o que significa sua entrada nas Olimpíadas?

Tá bom, tá bom, as Olimpíadas acabaram já faz tempo, mas elas só acontecem a cada quatro anos,e algumas coisas não se tira da cabeça tão facilmente.
O motivo dessa insistência não poderia ser outro senão um dos novos queridinhos da torcida brasileira: o skate, que teve uma estreia mais do que bem sucedida nas Olimpíadas de Tóquio e tornou-se o segundo esporte mais praticado do Brasil. O skate voltou às telas do mundo em Paris não mais como uma modalidade teste, mas sim como parte da nova realidade dos jogos olímpicos e da investida do COI (Comitê Olímpico Internacional) para atingir uma nova geração de espectadores e atletas.
No entanto, para mim, havia ainda certo incômodo, que não conseguia pontuar de maneira certeira, em relação àquela situação. Este incômodo não apenas com o skate, mas que sentia em relação a uma tendência dos jogos olímpicos, e que se materializava nas competições dessa modalidade.
A realidade é que essa “olimpização” do skate é há tempos uma questão polêmica não só no meio profissional do skate, mas para grande parte de seus praticantes amadores e para aqueles que, de uma forma ou outra, vivem mais ou menos inseridos nessa cultura. Existe uma grande dicotomia na própria prática do skate e como pessoas de dentro da cultura a tratam, sendo a inserção permanente do skate nos jogos olímpicos algo representativo de uma possível prevalência de um de seus aspectos em detrimento do outro. Mas, para entender melhor, talvez caiba uma breve retrospectiva de sua história.
Das ruas às pistas e… às ruas novamente!!!
Tendo se popularizado nos ciclos jovens da classe média paulistana no início da década de 70, o skate e sua cultura não costumavam ser do que é hoje: os shapes eram menores e mais pesados; não existiam as rodas de poliuretano; o downhill era a única “modalidade” existente; e era considerado tanto por seus praticantes quanto pelas pessoas de fora apenas como uma brincadeira. A sua rápida popularização, no entanto, como era de se esperar de uma prática que se utilizava de ladeiras públicas, passou a representar um problema para a administração do município de São Paulo, chegando a gerar um embate físico entre a Guarda Municipal e mais de 100 skatistas em 1975.

Neste mesmo ano, inclusive, o skate foi proibido pela primeira vez na cidade de São Paulo, sendo permitido apenas na “Rua do Skate” (uma via circular delimitada pela prefeitura para a prática) no bairro do Morumbi e voltando a ser permitido nos anos seguintes, devido à grande adesão dos jovens à prática. Em 1988, época em que Jânio Quadros era prefeito de São Paulo, a prática do skate foi proibida novamente, sendo descriminalizada apenas no mandato seguinte, de Luiza Erundina.
No final da década de 70 e começo dos anos 80, apesar da estigmatização e esforço de diversos setores da sociedade em marginalizar a prática do skate, a sua popularidade e o número de skatistas apenas cresceram na capital paulista, o que suscitou uma mudança de abordagem quanto à prática do skate, vinda tanto por parte dos próprios skatistas quanto dos políticos. Inicia-se, assim, a busca da esportivização do skate.
Pelo lado dos skatistas (ou ainda “esqueitistas”, grafia comum durante os primeiros anos do skate no Brasil) a esportivização significava uma busca por legitimidade e legalidade da prática, assim como a construção de espaços totalmente dedicados ao skate. Já os políticos que se inseriram nessa discussão buscavam uma regulamentação da prática para estabelecer parâmetros para que os esqueitistas não entrassem em rota de colisão com a administração pública e, ao mesmo tempo, pudessem reembalar a prática para ser vendida como esporte e, portanto receber investimentos tanto públicos como privados.
Nesse momento, além de propostas legislativas e associações de skatistas, testemunhou-se o surgimento de revistas que tinham como principal linha editorial a defesa do enquadramento do skate como esporte (notadamente as revistas “Esqueite”, “Skate Brasil”, “Overall” e “Yeah!”), linha de pensamento sobre a prática que se estabeleceu como a principal por cerca de uma década, até a segunda metade dos anos 80.

Com a popularidade do skate continuando a crescer, surge, de forma paralela ao movimento de esportivização, a modalidade de street skate. Popularizada em meados dos anos 80, após a invenção revolucionária do ollie e, posteriormente, do kickflip, a nova modalidade tinha uma natureza essencialmente urbana e pautada no uso dos espaços urbanos como obstáculos. Nasce um novo “olhar skatista”, nascem os picos das cidades. Mais especificamente em São Paulo, a popularidade ganha com os movimentos de esportivização não foi acompanhada por uma quantidade proporcional de investimentos em pistas (principalmente bowls e half pipesnessa época), de forma que os novos skatistas — que, por sinal, não paravam de surgir — precisavam se adaptar e adaptar a própria prática.
Formou-se então um ambiente propício para que o street skate começasse a se popularizar e que, junto a isso, a natureza transgressiva e contra-sistema do skate tomasse mais forma e popularidade entre os praticantes e a mídia especializada — vale notar que nesta mesma época, nos Estados Unidos, nascia o que viria a ser a revista mais influente do mundo do skate: a Thrasher Magazine, com uma linha editorial muito mais focada no “lifestyle” e na filosofia de vida e de ação dos skatistas.
Desta forma, em paralelo com a figura do skate enquanto esporte radical, nasceu a ideia do skate como citadinidade, cunhado por Giancarlo Machado em sua dissertação de mestrado (De “carrinho” pela cidade: A prática do street skate em São Paulo). O skate passa à ser não só um esporte radical — não se trata apenas do cumprimento de regras e padrões e do melhoramento da técnica individual — ou até mesmo uma onda transgressiva sem razão de ser, mas sim uma forma de ocupar e de experienciar a cidade que se propõe a dar um novo olhar para o espaço urbano. Citadinidade esta que é constantemente marginalizada, tanto por apontar as controvérsias espaciais dos centros urbanos, quanto por utilizar tais espaços de forma não planejada pela administração pública, fazendo com que os skatistas integrem o grupo de “citadinos indesejáveis” — isto é, corpos constantemente marginalizados e excluídos tanto pelo Estado quanto pela sociedade da participação plena dos espaços urbanos (por exemplo, pessoas queer, crianças, usuários de drogas, etc.).
De volta às Olimpíadas
Agora, voltemos desta (nada) breve recapitulação.
Não deve ser surpresa, então, que muitos dos OG’s e até mesmo membros da geração mais recente do skate (sim, nós Gen Z e Millenials que cresceram nos anos 2000) não estavam exatamente ansiosos com a entrada da modalidade nas Olimpíadas, não sendo difícil achar nomes que foram contra tal inclusão durante anos. Isso se dá pois não há um “skatista esportista” e um “skatista street”, o esporte e a citadinidade (ou até mesmo a “ideologia do skate”) convivem na mesma comunidade; o skatista que passou décadas vivendo com os lemas de skate or die e skate & destroy é o mesmo que passou anos assistindo os X Games e o SLS.
Assim, ao contemplar a possibilidade de entrada da modalidade nas Olimpíadas, competição que expressamente proíbe manifestações políticas e que não tolera transgressões, é esperado que haja, no mínimo, uma preocupação daqueles que vivem e sempre viveram de acordo com a lógica transgressiva do skate. Isso, somado à enorme polêmica envolvendo qual entidade representaria os brasileiros perante o COI, e a tentativa de apagarem o papel histórico da CBSk (Confederação Brasileira de Skate), que sempre representou os brasileiros que competem na modalidade, criou um clima de dúvidas quanto as Olimpíadas de Tóquio, para se dizer o mínimo.
A questão é que as Olimpíadas, diferente das outras competições de skate, não existe sob a mesma lógica. Teóricos da Teoria Crítica do Esporte (TCE) diriam, talvez, que os Jogos Olímpicos atuam em uma lógica não só neoliberal, como autoritária e militarizada. Os regulamentos rígidos, a exigência de organizações unificadas nos países, a proibição de manifestações políticas e religiosas, a exaltação do trabalho individual, e a necessidade de criar um produto que possa ser vendido através dos agentes de mídia internacionais , fazem com que os Jogos Olímpicos mais do que apenas proponham, mas demandem um apagamento dos aspectos políticos do esporte.
E aqui não falo como se os Jogos Olímpicos em si fossem um grande monstro (afinal, religiosamente, de 4 em 4 anos passo dias e dias pensando apenas nas diversas competições que ocorrem), mas sim que, de várias maneiras, eles promovem o pagamento de aspectos importantes dessas práticas. É impensável considerar episódios como o do Adriano Imperador mostrando sua camiseta escrita “Que Deus perdoe essas pessoas ruins” ou do Balotelli com a icônica frase “Why always me”, elementos alienígenas ao esporte e, mais do que isso, às competições. Mais do que integrar os esportes, essas declarações, esses posicionamentos, os permeiam, pois, assim como toda manifestação cultural, o esporte é político, mesmo que sempre existam forças que teimem a reduzir ou mascarar este aspecto.
No entanto só pude constatar este incômodo com mais exatidão quando tive a chance de assistir uma cena que para mim (e provavelmente para muitos outros também) foi representativa da esperança de que talvez o skate represente uma resistência à essa lógica, mesmo que “de dentro” dos Jogos Olímpicos:
Depois de ter feito uma final muito abaixo do seu potencial e já estando eliminado, o canadense Cordano Russell aparece no lado contrário do skate park pronto para fazer uma manobra que já havia tentado em outros momentos do circuito olímpico e, até então, falhado consecutivamente. Após pegar impulso, vemos, mais uma vez, Russell caindo após a tentativa de fazer um 50-50 (fifty-fifty) subindo o corrimão. Logo, acontece o que foi talvez o momento mais marcante dessa final (perdão, Kelvin Hoefler). Ao invés de seguir o protocolo e prontamente se retirar da pista para liberá-la para o próximo competidor, o que vinha sido feito por todos até o momento, Russell volta para o drop e executa perfeitamente a manobra que falhou tantas vezes durante a competição, sendo absolutamente ovacionado pela torcida e pelos outros competidores.
Nesse momento, e após ouvir dos comentaristas da CazéTV, Vitor André e Pipa Souza, frases como “finalmente alguém quebrando regra”, “nunca vi campeonato de skate sem alguém quebrar regra” e, principalmente, “se não quebrar regra, não é skate”, pude notar este incômodo que sentia desde antes de Tóquio e, ao mesmo tempo, perceber que talvez o skate represente justamente uma resistência ao descolamento político que os Jogos Olímpicos tentam promover em sua competição.
Mesmo que muitos ainda não entendam a razão dos competidores do skate vibrarem com as manobras dos seus adversários, repreenderem os torcedores que torcem pela queda dos competidores ou até mesmo reverenciarem a quebra das regras da competição, talvez a introdução do skate como modalidade permanente represente, na melhor das hipóteses, uma tendência de maior aceitação dessas manifestações — como visto pela reedição da norma 50 em 2019, que passou a permitir que atletas, mesmo durante a realização dos Jogos Olímpicos, façam declarações políticas ou religiosas, desde que não estejam competindo ou participando de qualquer premiação no momento.
Mais do que isso, ao ter pessoas que sempre foram muito skate e entendem as nuances da cultura do skate à frente da organização dos torneios das Olimpíadas e das instituições nacionais dos países, como Bob Burnquist que foi presidente da CBSk de 2017 a 2019, e uma mídia comprometida com o skate a cultura pode crescer muito, sem perder sua essência. Afinal, essas duas últimas olimpíadas têm mostrado que o efeito do televisionamento, além de reduzir a marginalização da prática pelas ruas da cidade, aumentou o número de praticantes, movimentou o mercado especializado na prática e fez crescer a procura por conteúdo relacionado ao skate.
Atualmente, inclusive, pensando na experiência moderna de começar no skate é essa procura e a abundância de conteúdo de skate comprometido com a ideologia que possibilita que as novas gerações de skatistas possam (entre um vídeo e outro ensinando a subir a guia ou a fazer um ollie) entender mais sobre a história dessa cultura e o que significa andar de skate. Isto, associado à experiência “empírica” do skate nas cidades e as trocas que acontecem com outros skatistas pelos picos da cidade, tem de tudo para “formar” os recém chegados.
Na pior das hipóteses, no entanto, o skate se tornará um esporte dissonante dos outros que estão presentes nos jogos e também da audiência e terá uma vida curta nos Jogos Olímpicos (o que não têm se mostrado provável). Isto pois, não parece que a tendência seja um cenário no qual o skate é “domado” pelas Olimpíadas, vide progressão de “demonstrações” da ideologia do skate nas competições, mas sim que o skate e o skatista continuarão sendo os rebeldes e transgressivos que nasceram pra ser.




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