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Cidade vem, cidade vai: da colonização à revisão do Plano Diretor

  • André Almeida Périco
  • 16 de set. de 2024
  • 6 min de leitura

Um olhar sobre a história da urbanização no Brasil e na capital paulista.


Homem olhando pela janela diz: "Querida, sabe o que falta nesta cidade? Prédios."
Ilustração: Vinicius Demarzo

André Almeida Périco


Ainda que de forma incipiente, o planejamento urbano existe no Brasil desde a colonização portuguesa, passando a se tornar timidamente mais constante e sofisticado a partir do Iluminismo com algumas reformas apresentadas pelo Marquês de Pombal. Foi durante a administração pombalina, por exemplo, que foi criada uma extensa rede de vilas e cidades, com o objetivo de demarcar a soberania do Estado sobre o território brasileiro. 


Durante o Império, emergiu como exemplo de planejamento urbano o município de Teresina, tratando-se da primeira cidade capital planejada. Essa época, em especial o Segundo Reinado, foi marcada por uma crescente contradição entre a modernização em regiões urbanas específicas e a permanência dos traços socioeconômicos e culturais dos séculos anteriores em outras localidades. Isso é perceptível até os dias de hoje na grande maioria das cidades brasileiras. 


É apenas na virada do século, porém, com o fim da escravidão e o consequente êxodo rural, a acelerada industrialização e a urbanização que passam a se aprofundar os grandes paradoxos que marcam a história social cultural do país e dos grandes centros urbanos.


Iniciam-se, então, debates sobre reformas urbanas, mas exclusivamente focados em estética e questões higiênicas, enquanto o crescimento populacional ocorre de forma rápida e sem planejamento. É nesse momento que surgem planos baseados nos exemplos europeus, o que significou na prática intervenções restritas aos centros e voltadas apenas para os interesses das elites, enquanto as populações vulneráveis foram empurradas - ou expulsas - para as periferias. 


O final da República Velha traz consigo as sementes dos Planos Diretores atuais. O desenvolvimento das classes operárias e da consciência da necessidade de planejar as cidades, organizando-as de forma racional e  buscando um objetivo comum, fez com que o urbanista francês Alfredo Agache apresentasse, em 1930, aquele que pode ser considerado o primeiro plano diretor do Brasil, nomeado Plano Agache. 


O plano foi precursor de um olhar para a cidade de forma mais ampla, preocupando-se com diretrizes válidas para todo o território e não apenas determinadas regiões. Nesta época, surge em São Paulo o Plano de Avenidas, que guiou o crescimento do município ao longo das décadas posteriores.


Os Planos Diretores surgem com um intuito simples, porém fundamental: direcionar o crescimento de uma cidade, servindo de guia para a gestão municipal. Em um contexto no qual as cidades, via de regra, já nasceram desordenadas, o plano assume importância ainda maior. 


É ele que irá organizar o uso e ocupação do solo, criando as  marcações, dentro do mapa, que vão determinar o que pode e o que não pode ser feito em cada uma das áreas, dizendo quais são legais e quais estão fora da lei, quem segue as normas e quem é irregular. As consequências políticas e socioeconômicas, naturalmente, são imensuráveis.


Ainda que o primeiro Plano Diretor da capital paulista tenha surgido em 1971 e sido regulamentado no ano seguinte pela Lei do Zoneamento, foi  um documento feito de cima para baixo, sem participação popular, que dialogou apenas com o setor mais rico da população. A lei não mencionava redução de desigualdades, gestão democrática ou direito à cidade, critérios que só adentraram os planos diretores após a Constituinte, em 1988, e o Estatuto das Cidades, em 2001.


Como consequência, o plano manteve intactos os bairros dos ricos e às periferias reservou-se um vazio legal, reforçando a lógica construída desde o período colonial e acentuando as diferenças entre as regiões paulistanas. Um exemplo disso está na expectativa de vida: segundo o Mapa da Desigualdade da Rede Nossa São Paulo, de 2020, no Jardim Paulista, área nobre da capital, a expectativa de vida é de 81,5 anos, enquanto no Jardim Ângela, 21 quilômetros distante, a expectativa cai para 58,3 anos. 


As diferenças não se resumem à longevidade, é claro. Além de a população periférica viver menos, vive pior, com acesso menor a serviços, comércio, esportes ou lazer, e longe dos centros de trabalho, passando boa parte do dia dentro do transporte público. Segundo Nabil Bonduki, relator dos Planos Diretores de 2002 e 2014, o plano inicial, de 1971, também ignorou a integração entre as várias políticas públicas: simplesmente determinou espaços de habitação desconsiderando desenvolvimento econômico, de empregos, entre outras coisas.


A Constituição de 1988, enfim, traz consigo os contornos jurídicos dos planos diretores municipais, assinalando ao Direito Urbanístico a finalidade de "servir à definição e à implementação da política de desenvolvimento urbano, a qual tem por finalidade ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem estar de seus habitantes". 


É o Estatuto de Cidade, por sua vez, que, em 2001, determina o formato do Plano Diretor, trazendo consigo instrumentos importantíssimos, como a outorga onerosa do direito de construir, usado pela Prefeitura para arrecadar recursos para investir no desenvolvimento urbano.


Segundo Pedro Siemsen, o plano de 2002 estabeleceu as bases que pautaram as discussões da criação do plano de 2014, dando força às ideias de tornar a cidade mais inclusiva, de trazer mais pessoas para os bairros centrais e de introduzir instrumentos de combate à desigualdade, como o IPTU progressivo. Além disso, o Plano Diretor de 2014 foi exemplo de estabelecimento de diálogo com diversos setores da sociedade e teve como principais objetivos a compactação da cidade, a promoção de crescimento econômico para todos e a participação popular.


O plano contou ainda com outras características, entre elas a priorização do transporte público, através da permissão da construção de edifícios altos com maior densidade habitacional e poucas vagas para carros apenas até 600 metros de distância de estações de trem e metrô e 300 metros de corredores de ônibus. 


Isso também buscava proteger os “miolos” de bairros. Nessas regiões, havia mais limitações para construção do que em outras áreas da cidade, buscando um uso misto desses espaços, com empreendimentos que fossem residenciais e comerciais simultaneamente.


Em relação à outorga onerosa, o plano de 2014 conseguiu duas importantes vitórias. A primeira se refere à redução do coeficiente de aproveitamento mínimo, ou seja, quanto de um terreno está sendo aproveitado pelo edifício que o ocupa, visto que imóveis com o coeficiente entre o básico e o máximo só podem ser construídos se pagarem a outorga.


Ainda mais relevante é a destinação deste recurso, e outra conquista foi a destinação obrigatória ao Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb), em percentuais de 30% para compra de terrenos destinados à produção de Habitação de Interesse Social (HIS) e outros 30% para obras relacionadas ao transporte público, ciclistas e pedestres. 


O Plano previa, quando da sua aprovação, uma revisão em 5 anos. Com a pandemia, a revisão foi adiada e retomada em 2023. A lógica, é claro, deveria ser manter o que está funcionando e mudar aquilo que não está. 


De acordo com Raquel Rolnik, urbanista da FAU-USP e ex-secretária nacional de programas urbanos, em entrevista à Agência Pública, o que ocorreu foi o contrário: as distâncias das estações aumentaram e o miolo dos bairros poderá ser mais verticalizado, em uma desestruturação da proposta original, ainda que nas audiências tenha sido apresentado pela população residente nessas áreas que os maiores problemas estavam justamente no excesso populacional.


No fundo, não há muita novidade. O processo segue a lógica da política brasileira e das dinâmicas municipais. Além do extremo poder que o mercado imobiliário exerce historicamente sobre os planos diretores, o que se verifica inclusive na sua linguagem, é praxe que os vereadores acompanhem o projeto do executivo visando obter ganhos políticos. 


Como acontece há cinco séculos, a cidade cresce para atender ao interesse de poucos, em detrimento de um cotidiano cada vez mais difícil para a maioria. Mas já que  tudo na política é pendular, depois de cada retrocesso podem vir novos avanços. Infelizmente, contudo, muitas mudanças já iniciadas na cidade dificilmente são passíveis de novos aprimoramentos e alterações. 


Ainda de acordo com Rolnik, a mudança a acontecer deve ser ainda mais profunda, na própria linguagem dos planos e no olhar sobre as cidades, pois tudo que se produz não conversa com a realidade e em especial com a crise climática. Além disso, é claro, ainda podemos recorrer aos próprios freios democráticos, judicializando toda alteração que vá de encontro ao interesse público. 


Ainda que sejam séculos de crescimento desordenado e privilegiado, adotar o conformismo não deve ser o caminho. Dentro ou fora de um Plano Diretor, da política ou das burocracias, olhar e pensar a cidade deve ser um dever de todos.


As opiniões expressas neste artigo são de exclusiva responsabilidade do(a) autor(a) e não representam, necessariamente, a posição da Gazeta Arcadas sobre o tema. Somos um veículo plural, composto por pessoas com diferentes perspectivas políticas, e prezamos pelo respeito à diversidade e à democracia.


Texto revisado e editado por Ricardo Bianco.

 

 


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