Céu de Turbulência: A Eterna Crise das Companhias Aéreas no Brasil
- Beatriz Brichucka
- 19 de nov. de 2024
- 5 min de leitura
No Brasil, o setor aéreo flutua entre endividamento e bailouts emergenciais. Sem uma política de aviação consistente, o setor seguirá dependente da mão invisível dos resgates.

Beatriz Brichucka
Desde os tempos em que a Varig despontava como referência, o setor aéreo brasileiro trilha uma trajetória marcada por ascensões ilusórias e quedas inevitáveis. De tempos em tempos, as manchetes ressurgem: uma companhia em recuperação judicial, um mercado retraído, uma infraestrutura aquém das demandas. Mas a complexidade do setor aéreo no Brasil não é fruto de um momento isolado; é, antes, o resultado de décadas de planejamento escasso e de uma série de medidas que, longe de projetar o futuro, parecem prender o setor em um ciclo de turbulência.
À primeira vista, os culpados parecem óbvios: custos elevados, dólar instável, petróleo volátil. No entanto, a explicação vai além desses sintomas, e revela um emaranhado de forças macroeconômicas e operacionais que minam a sustentabilidade do setor.
O marco de crise começou na década de 1990, quando o “open sky” expôs as companhias aéreas a uma tentativa mal pensada de liberalização. Com o ingresso desestruturado de concorrentes estrangeiros, a fatia de mercado das companhias nacionais em rotas internacionais despencou de 50% para 7,5%. A promessa de tarifas baixas logo revelou seu custo: Varig, Vasp e TransBrasil não resistiram. Com isso, a oferta de rotas se concentrou nas companhias internacionais, enquanto empresas regionais que poderiam sustentar o mercado interno foram deixadas à deriva.
O resultado? A extinção de rotas e o isolamento de várias regiões do país. Em um território de dimensões continentais, essa retração é desastrosa. A política de aviação regional foi relegada a segundo plano, criando uma malha aérea restrita, com apenas 12% das operações destinadas a voos de curta distância – um percentual bem abaixo da média global de 30%.
Hoje, um passageiro pode se ver forçado a passar pelo Sudeste para viajar entre capitais do Nordeste, reflexo de uma malha desarticulada e de um desinteresse em desenvolver eixos regionais que descentralizem o tráfego. Esse déficit logístico restringe a mobilidade, compromete a integração nacional e afasta investimentos para o desenvolvimento econômico regional.
Do outro lado desse desequilíbrio, está a Embraer, símbolo da indústria aeronáutica nacional. Originalmente concebida para integrar o país com aeronaves de médio porte, adaptadas a rotas regionais, a Embraer se especializou, ao longo dos anos, em aviões projetados para conectar cidades menores a grandes centros urbanos. Mas sem uma malha nacional que sustente essa demanda, as aeronaves da Embraer têm um destino predominantemente internacional.
O cenário econômico adiciona mais um fardo a esse contexto. A aviação brasileira é refém de uma estrutura de custos dolarizada. Combustível, leasing e seguros de aeronaves – todos em dólar – representam despesas que corroem as margens de lucro e geram uma cadeia de endividamento e dependência de crédito.
A situação se agrava porque o câmbio não afeta apenas os custos fixos: ele permeia todas as operações e reduz a competitividade das empresas nacionais frente às internacionais. Se uma companhia aérea estrangeira desfruta de uma estrutura de custos mais estável e em sua própria moeda, suas margens permitem oferecer passagens mais acessíveis ou operar com menos incerteza. Já a empresa brasileira, forçada a repassar aumentos de custos aos passageiros, afasta clientes e compromete sua rentabilidade.
O hedge cambial, utilizado em muitas economias maduras para neutralizar as variações do câmbio, é praticamente inexistente no Brasil. Embora possa proporcionar alguma previsibilidade de custos, ele depende da disponibilidade de capital financeiro e, na prática, é arriscado para empresas que já operam com margens reduzidas e precisam de liquidez imediata.
Para uma companhia aérea fragilizada, destinar recursos ao hedge significa cortar investimentos em expansão de frota, qualidade de serviço ou até mesmo comprometer a estabilidade da operação. Uma estratégia de luxo para quem está com os pés na areia movediça.
Azul e Gol, as protagonistas da crise atual, tentam equilibrar-se em um repertório conhecido: renegociações, captações emergenciais e reestruturações cosméticas. A Azul fechou recentemente uma captação de US$500 milhões junto a credores estrangeiros, afastando momentaneamente o risco de insolvência. O plano inclui a possibilidade de converter até US$800 milhões da dívida em participação acionária, uma manobra que, a despeito de aliviar temporariamente o balanço, dilui a participação dos acionistas e gera incertezas quanto à valorização futura da companhia.
A Gol também costurou uma desalavancagem de aproximadamente US$ 2,5 bilhões, com destaque, também, para a conversão da dívida em ações. Esse ajuste, essencial para a continuidade das operações a curto prazo, busca preparar a empresa para sair do processo de recuperação judicial nos Estados Unidos, o Chapter 11, até abril de 2025. Entre as manobras, está a captação de US$ 1,85 bilhão para quitar o financiamento DIP e gerar algum fôlego para o futuro. Mas é uma operação que, na prática, funciona mais para cobrir os buracos do que para criar qualquer perspectiva de expansão.
À vista do iminente colapso das companhias aéreas, o governo federal lançou um novo pacote de resgate, um bailout para as aéreas. O Fundo Nacional de Aviação Civil (FNAC) destinará 5 bilhões de reais ao setor em uma tentativa de fornecer combustível financeiro para empresas que, sem esse auxílio, enfrentariam um cenário de estagnação e, possivelmente, insolvência. No entanto, longe de resolver a crise estrutural que assola a aviação brasileira, o pacote funciona mais como um balão de oxigênio – necessário, mas insuficiente.
A tentativa de compensar a falta de planejamento com incentivos esporádicos e subsídios paliativos pouco resolve. O pacote pode oferecer alívio temporário, mas dificilmente proporcionará uma rota de escape sustentável. Azul e Gol, presas em renegociações com credores e em ajustes financeiros que mal cobrem os buracos de seus balanços, são exemplos (ainda) vivos de um mercado que sobrevive de remendos e paliativos, nunca de soluções de longo prazo.
Por três décadas, o setor aéreo brasileiro tem seguido um roteiro já conhecido: bailouts emergenciais, renegociações de dívidas e injeções de crédito que, em vez de resolverem o problema, apenas prolongam a crise. Essas medidas paliativas mantêm as empresas em um estado de sobrevida, mas não eliminam as raízes de um modelo estruturalmente frágil, que exige muito mais do que socorros de curto prazo. Em qualquer parte do mundo, a aviação não sobrevive sem uma base de apoio governamental; aqui, isso se reflete na dependência crônica de remendos financeiros e resgates improvisados.
No entanto, uma estratégia que mira o futuro precisa mais do que socorros momentâneos. O Brasil, raro entre as economias emergentes por ter uma indústria aeronáutica própria, pode explorar esse diferencial em uma política de longo prazo com exigência de contrapartidas, como a manutenção de rotas regionais e a criação de empregos no setor. E para atrair investidores reais, não oportunistas de crise, o país precisa garantir segurança jurídica e regulatória – condições fundamentais que o setor aéreo brasileiro desconhece.
Em última análise, o setor aéreo desafia a lógica de mercado: é uma indústria que, sem suporte, não se sustenta. Sem um apoio estatal consistente, continuará voando baixo, refém de um ciclo perpétuo de resgates que apenas alivia as crises momentaneamente, mas nunca traz soluções duradouras.
As opiniões expressas neste artigo são de exclusiva responsabilidade do(a) autor(a) e não representam, necessariamente, a posição da Gazeta Arcadas sobre o tema. Somos um veículo plural, composto por pessoas com diferentes perspectivas políticas, e prezamos pelo respeito à diversidade e à democracia.
Texto revisado e editado por Ricardo Bianco.
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