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Pelas cotas trans na USP!

  • Matheus Marcelo Viola Costa
  • 2 de dez. de 2024
  • 6 min de leitura

Política avança nas universidades públicas e deve-se lutar para que ela seja implementada na USP.



Rosto branco com os olhos fechados.
Ilustração: Vinicius Demarzo

Matheus Marcelo Viola Costa


Após anos de luta, os movimentos sociais de pessoas trans e travestis estão muito próximos de uma grande conquista. As cotas para pessoas trans para o ingresso nas instituições públicas de ensino superior estão há tempos na pauta de diversos movimentos de esquerda, mas isso ganhou um novo capítulo e está cada vez mais próximo de se concretizar em 2024.


Em várias universidades federais e estaduais, o debate sobre as cotas trans já está bem avançado, e em algumas delas, a política já foi até mesmo implementada. Mas isso não significa que a questão está resolvida. Pelo contrário, é imperiosa a ampliação da frente de batalha dos direitos das pessoas trans e travestis na academia. 


O avanço das cotas trans nas universidades


Apesar de a pauta ter ganhado fôlego recentemente, as cotas trans não começaram a ser implantadas este ano. Algumas  instituições já o fizeram muito antes. O estado brasileiro pioneiro dessa prática foi a Bahia. A Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e a Universidade do Estado da Bahia (Uneb) foram algumas das primeiras a colocar em prática esse tipo de política, respectivamente em 2017, 2018 e 2019. A título de comparação, as cotas raciais na USP foram implementadas em 2018, com notável atraso em relação ao resto do país e seis anos após a aprovação da Lei de Cotas (Lei Federal n° 12.711 de 2012).


A proposta das cotas trans se espalharia nos anos seguintes para outros estados da federação. A Universidade Federal do ABC (UFABC) foi pioneira em São Paulo na sua implementação, ocorrida  em 2019, com a reserva de 40 vagas naquele momento. Em 2023, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) aprovou ações afirmativas de ingresso e permanência para pessoas transexuais, travestis, transmasculinas, transgêneras e não-binárias. 


Em 2024, houve um aumento significativo do número de universidades públicas que passaram a adotar a política. Grandes instituições como Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Universidade Federal Fluminense (UFF) e, mais recente, a Universidade de Brasília (UnB) passaram a reservar uma  porcentagem (geralmente 2%) de suas vagas para essa população.


O debate avança em várias entidades de ensino superior, como a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a própria Universidade de São Paulo (USP). A Unicamp fez duas audiências públicas em relação ao tema em setembro (fruto das conquistas da greve estudantil do ano passado, aliás) e, na UFMG, uma comissão dedicada à elaboração de políticas para a comunidade LGBTQIAPN+ entregou um relatório à reitoria com propostas, dentre as quais estão as cotas trans.

 

Na USP, entidades estudantis e professores têm atuado para evitar que o vexatório cenário que culminou no atraso da instituição na implementação das cotas PPI se repita. Por exemplo, a Congregação da Escola de Comunicação e Artes (ECA) assinou no dia 30 de outubro a moção - apresentada pelo corpo discente - em apoio à implantação da ação afirmativa, e o DCE Livre da USP, coletivos, estudantes e docentes da universidade têm realizando atos, reuniões, abaixo-assinados e atuado de outras formas para levar o projeto adiante.


A importância de mobilização


A conquista das cotas para pessoas trans e travestis será um enorme divisor de águas para essa comunidade. Parafraseando o militante, professor e pesquisador Carlos Bauer, em seu texto A classe operária vai ao campus, mesmo com todas as suas contradições, a universidade e o ensino superior são um dos poucos caminhos que existe para a classe oprimida almejar alguma ascensão social e melhora nas sua qualidade de vida e trabalho, ainda mais com o processo de industrialização e o aumento da demanda por mão-de-obra qualificada desde a segunda metade do século XX.


Tudo isso se aplica à comunidade trans, considerando a assustadora opressão e violência à qual essa população é submetida. Em 2022, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 131 pessoas transgênero se suicidaram ou foram assassinadas (em sua maioria pessoas negras). No ano seguinte, o número aumentou para 145. O mesmo instituto estimava em 2021 que aproximadamente 90% da população trans brasileira tem como única fonte de renda e subsistência a prostituição


Sem contar que esse grupo costuma ser expulso muito cedo de seus lares familiares e até das escolas, encontrando entraves em relação ao ingresso no mercado de trabalho e aos direitos de moradia, sexuais, reprodutivos - em suma, aos direitos humanos no geral. O acesso ao ensino superior de qualidade pode representar um grande salto de qualidade de vida para esse setor da sociedade.


Além disso, assim como ocorreu com as cotas raciais, essa política afirmativa tem o potencial de transformar não só a vida dessas pessoas, mas também a academia. Se atualmente temas como os direitos da população LGBTQIAPN+ são tratados de formas bem laterais pela maior parte nas faculdades, as cotas representarão quase que uma entrada forçada do tópico em diversos artigos científicos.


Há quem diga que a política de cotas trans é falha, pois seus critérios são pouco precisos. Se isso é verdade, dá-se justamente pela marginalidade com a qual se trata o tema. Ao inserir as pessoas trans nas universidades, nos locais de pesquisas e nos centros de formulação de políticas, será possível dar melhor retoque a essas práticas. As cotas trans são fundamentais até mesmo para sua própria implementação adequada.


A oposição e a luta


Com o avanço do tópico na esfera pública, fortalecem-se também os discursos e os movimentos avesso a tal transformação. Tanto nas eleições municipais de 2024 quanto nas gerais de 2022, vereadores e deputados com quantidades altíssimas de votos foram eleitos tendo como uma de suas principais características os discursos transfóbicos. Esse grupo opõe-se de maneira voraz a qualquer forma de política de inclusão voltada para essa comunidade, acentuando a opressão da qual ela é vítima.


Mas não se pode atribuir essa resistência à pauta apenas a setores à direita, pois há setores resistentes às cotas trans mesmo dentro da esquerda. Afirma-se que essas pautas “identitárias” fragmentariam a população e a classe trabalhadora e dificultariam a mobilização por pautas mais tradicionais da esquerda e alegadamente mais importantes. Entende-se também que essa pauta seria maléfica mesmo dentro da noção de movimento estudantil, afastando a mobilização dos estudantes da única pauta relevante, que seria o fim do vestibular e o livre acesso à universidade.


Esse tipo de posicionamento ignora pontos importantes. A única forma de realmente libertar a classe trabalhadora de todo tipo de dominação e opressão é através da mobilização com independência de classe e uma política revolucionária, mas opor isso ao enfrentamento das opressões contra a comunidade trans e travesti, por exemplo, é insustentável.

 

Nas palavras da militante e jornalista Mariúcha Fontana, em O marxismo e as opressões, as violências de gênero, raça e sexo - entre outras - não são só vestígios do passado. Elas têm um papel político, jurídico e socioeconômico importante no sistema capitalista ainda hoje, em algum grau sendo inerente a ele. Não é a mobilização por pautas “identitárias” que fragmenta os trabalhadores. Pelo contrário, esses preconceitos e ideologias já estão previamente no interior da classe e isso dificulta a mobilização.

 

Lutas tidas como “menores” na tradição da esquerda são centrais em questões de organização. Os “problemas da democracia”, nas palavras de Lenin, ainda que só possam ser satisfeitos parcialmente no capitalismo, possibilitam a partir de sua luta e conquista, por um lado, a dar mais nitidez a necessidade da luta socialista e, por outro, a fazer com que os dominados desenvolvam a percepção da sua própria força e dá condições morais e organizacionais melhores para as próximas batalhas. Cita-se, nessa questão, Vladimir Lenin, em 1905 - Jornadas Revolucionárias:


“A verdadeira educação das massas nunca pode estar separada de sua luta política independente e, sobretudo, da luta revolucionária. Só a luta educa a classe explorada, só a luta revela a magnitude de sua força, amplia seus horizontes, desenvolve sua inteligência e forja sua vontade” (Lenin, Vladimir).


As cotas trans nas universidades públicas não vão resolver de maneira integral todos os problemas dessa comunidade no ambiente acadêmico, e nem sequer se propõem a fazê-lo. Quando a medida for implementada na USP, urge que seja imediatamente acompanhada de ações visando à criação de políticas de inclusão, pertencimento e permanência, respeito ao nome social, direito ao esporte, entre outras.


A mobilização anterior pelas próprias cotas servirá como instrumento facilitador da mobilização dentro e fora da universidade, não só dessas novas lutas, mas também nos atos por pautas mais clássicas como o livre acesso ao ensino superior e o fim do vestibular. Afinal, o que catalisa uma mobilização política não são somente questões econômicas ou fatos políticos completamente alheios às pessoas, mas são também e em grande parte fatores morais, psicológicos e sociais.


O enfrentamento dessas opressões permite a melhor união dos trabalhadores para tomar o poder e se libertar. Tratar desses temas sem uma perspectiva de classe e revolucionária não permite que os objetivos almejados sejam alcançados, mas negar sua importância e rebaixá-los diante de outras pautas alegadamente mais importantes é igualmente ruim. Ambos devem caminhar conjuntamente para realizar seus fins.


As opiniões expressas neste artigo são de exclusiva responsabilidade do(a) autor(a) e não representam, necessariamente, a posição da Gazeta Arcadas sobre o tema. Somos um veículo plural, composto por pessoas com diferentes perspectivas políticas, e prezamos pelo respeito à diversidade e à democracia.


Texto revisado e editado por Ricardo Bianco.



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