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Epidemia de bets

  • Matheus Marcelo Viola Costa
  • 29 de out. de 2024
  • 7 min de leitura

As apostas online espalham-se e causam danos ao bem-estar financeiro dos cidadãos e à saúde pública.


A pata de um tigre segura cédulas de R$ 50,00 e R$ 100,00.  Lê-se "Gazeta Bet - faça sua fézinha".
Ilustração: Vinicius Demarzo

Matheus Marcelo Viola Costa


O mercado de jogos de azar online teve um grande crescimento no Brasil nos últimos anos. Não só diferentes empresas do ramo estão cada vez mais inseridas no cotidiano dos brasileiros, mas desenvolveram grande poder econômico e até patrocinam grandes celebridades, influencers, canais de televisão e entidades desportivas.


Com a expansão das bets, cresceu também o número de casos de pessoas que tiveram suas vidas destruídas por conta do vício em jogo. Tanto o bem-estar financeiro quanto mental dos apostadores vem sendo corroído pelos cassinos online.


História da legislação brasileira sobre jogos de azar


Segundo Carolina Malagoli Krelling, professora de história e mestre em teoria, filosofia e história do direito pela UFSC, no texto Os Jogos de Azar na Legislação Penal Brasileira, a exploração de jogos de azar no país começou em 1808, com a chegada da família real portuguesa. A atividade foi utilizada para abastecer os cofres públicos e viria a ser regulada em todo o Império em 1844.


Entre idas e vindas na regulação dos jogos de azar no final do século XIX, eles foram parcialmente proibidos pelo Código Penal em 1890, excluídas as apostas em corridas a pé ou a cavalo, e de maneira integral em 1941 pela Lei de Contravenções Penais (continuando autorizadas as loterias estatais). No entanto, o período de autorização foi mais do que suficiente para que a prática dos jogos de azar se enraizasse na sociedade brasileira, levando à proliferação de casas de apostas privadas regulares e irregulares.


 A motivação para a proibição à época, segundo Krelling, não era a preocupação com  a saúde pública ou a proteção do patrimônio dos cidadãos, mas sim ideias de caráter higienista, preconceituoso e autoritário. Evidência disso é que tanto o Código de 1890 quanto a Lei de Contravenções Penais puniam o ponteiro e o apostador, dando especial atenção aos infratores “vadios”. Desde essa época, o bem-estar da população ficava em segundo plano quando se falava em jogos de azar.


A proibição seguiu relativamente firme até o fim do século XX. No século XXI, a Lei de Contravenções Penais (por mais que preserve a vedação ao jogo de azar em sua substância) perdeu muita força em questões de eficácia. Desde então, diversas legislações surgiram, abrindo brechas para a expansão das apostas na internet. 


A expansão do mundo digital dificultou a intervenção do judiciário e do Poder Público. Como, no início, a maior parte dos cassinos online se localizava no exterior (por vezes, em paraísos fiscais) e havia um grande número de sites, as empresas desse mercado conseguiram desviar-se das intervenções estatais e cresceram na economia nacional.


A regulação do setor de apostas online se deu de forma acelerada a partir de então. Em dezembro de 2018, durante o governo Temer, foi sancionada a Medida Provisória 846, que  legalizou as chamadas “apostas de cota fixa” (bets) no Brasil. Havia na MP uma previsão para a regulamentação do tópico pelo Ministério do Esporte nos próximos 4 anos, mas isso não ocorreu.


Uma nova legislação passou a tratar do assunto a partir de 2023, com a formulação da Medida Provisória 1.182, logo substituída pela lei 14.790 (Lei das Bets) e complementada pela Portaria Normativa 1.330 do Ministério da Fazenda. O objetivo do projeto foi regularizar as empresas de apostas, criar instrumentos que possibilitem a fiscalização e tributação da atividade, combater o vício em jogo, impedir que grupos de pessoas vulneráveis apostem (menores e pessoas que sofrem de ludopatia) e prevenir fraudes e outros crimes.


Segundo a nova lei, só serão regularizadas e autorizadas a atuar no Brasil pelo Ministério da Fazenda as empresas que, dentre outros requisitos, tiverem sede e administração no território nacional, possuírem entre seus sócios um brasileiro detentor de ao menos 20% do capital social e utilizarem a língua portuguesa nas suas operações.

São requisitos exigentes, considerando que grande parte das pessoas jurídicas citadas são multinacionais, mas sua eficácia é duvidosa, tendo em vista a dificuldade existente da intervenção administrativa e judiciária no meio digital.


As mazelas das apostas online


A negligência ao debate acerca dos jogos de azar online por tanto tempo potencializou os efeitos negativos dessa prática, os quais se tornaram mais do que evidentes em 2024. A facilidade de acesso que a internet proporciona e o bombardeio de propagandas de bets causam uma proliferação sem precedentes desses jogos e dificultam o combate ao vício.


Espalham-se pelos noticiários casos de pessoas que arruinaram suas vidas financeiras por conta das apostas. Influenciados pelas promessas de retornos financeiros, os usuários apostam em grandes quantidades e acabam por entrar em um ciclo vicioso, dilapidando tanto o patrimônio próprio quanto o familiar.


A adversidade chegou a um patamar tão preocupante que a necessidade de intervenções ganhou projeção nacional. Circulam hoje no Congresso Nacional projetos de lei que visam restringir a atividade dessas plataformas e suas campanhas de publicidade. 


Os Ministérios do Desenvolvimento Social, da Fazenda e da Saúde organizam-se para remediar os efeitos negativos das bets e o próprio presidente Lula levou a questão à Assembleia Geral da ONU, ressaltando a necessidade de haver uma regulamentação internacional dos mercados de apostas e defendendo “acabar” com as bets caso isso não funcione. 


Ademais, sob a relatoria do ministro Luiz Fux e a requerimento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), está sendo julgada no STF a Ação Direta de Inconstitucionalidade 7721, que busca declarar inconstitucional a Lei 14.790, e há audiência pública marcada para 11 de novembro visando discuti-la.


Porém, os efeitos negativos das apostas online não atingem a todos igualmente. Suas mazelas incidem principalmente sobre a população pobre, trabalhadora e oprimida. Somente em agosto de 2024, cerca de 3 bilhões de reais do dinheiro direcionado pelo Bolsa Família às famílias em situação de pobreza e extrema-pobreza foram utilizados para apostas online, o que corresponde a  20% do total pago pelo governo federal.


Isso se reflete até mesmo nas propagandas das empresas de apostas esportivas.  Em materiais publicitários que transitam por grandes meios de comunicação, é possível identificar mensagens que relacionam as apostas com a ideias de resiliência e resistência para enfrentar as dificuldades.


Por isso, não se deve tratar esse problema como mera questão individual e isolada, nem como um sintoma da falta de conhecimento dos brasileiros sobre “empreendedorismo” e investimentos. Deve-se analisar o fato em toda a sua complexidade social.


A ânsia por fazer apostas online tem, por vezes, origem no desespero que permeia a situação socioeconômica do apostador. Diante do desemprego e das dívidas, a possibilidade de ganhar dinheiro com apenas um clique pode parecer uma luz no fim do túnel. Segundo o Instituto Locomotiva, 53% dos apostadores afirmam utilizar os sites de apostas como fonte de renda, e não como mera “fonte de entretenimento”. 


 Na hipótese do apostador ganhar, o prazer e a emoção do momento podem levá-lo a se arriscar mais e mais. Se ele perde, é tomado pelo desespero de recuperar o dinheiro perdido, o que o faz voltar às apostas. De qualquer forma, é bem provável que, no final da operação, a vencedora seja a banca - lógica perversa inerente aos jogos de aposta.


Outro aspecto historicamente ignorado é a relação entre o tema e a saúde pública. Rodrigo Menezes Machado, psiquiatra e pesquisador na Faculdade de Medicina de São Paulo (FM-USP), em entrevista para o Jornal USP, ressalta que os profissionais da saúde foram pouco consultados e que as campanhas de conscientização dos riscos das apostas são quase inexistentes, o que seria prejudicial à saúde pública, uma vez que jogos de azar são persuasivos ao cérebro e podem gerar adoecimento. 


Para além do vício, os gastos com apostas geram sentimentos de culpa e tristeza e destroem amizades, famílias e casamentos. Consequentemente, isso pode acarretar o desenvolvimento de transtornos como a depressão, ansiedade e alcoolismo.


Tudo isso sem contar a instrumentalidade dos cassinos online para o crime organizado. Se as casas de apostas físicas eram epicentros para crimes como o tráfico de drogas e o lenocínio, passaram a predominar as fraudes e a lavagem de dinheiro no ambiente online. Há investigações em curso que ligam certas bets a grandes organizações criminosas como o PCC e o Comando Vermelho. Personalidades públicas já tiveram problemas com a justiça relacionados a  casas de apostas online.


Esses são problemas que não podem ser integralmente resolvidos com a regulamentação. Por mais que regular o setor seja melhor do que o estado de completo caos antes existente, a atual legislação apresenta graves contradições. A vedação da aposta por menores e o combate à ludopatia são fundamentais, mas o problema não se resume a isso. 


Como as políticas de conscientização sobre o vício em jogo ainda são embrionárias, os indivíduos terão dificuldade em identificar o vício e buscar auxílio médico, e provavelmente só o farão quando o estrago já for bem grande. “Avisos de desestímulo ao jogo e de advertência sobre seus malefícios” (termos utilizados no art. 16, inciso I do parágrafo único, da Lei 14.790) ou a noção de “autorregulação” por parte do apostador que o art. 18 da Portaria Normativa MF 1.330 carrega são contestáveis diante da persuasividade das peças publicitárias das empresas de apostas e da atratividade de seus jogos. 


Felizmente, o Ministério da Saúde, em conjunto com o da Fazenda, tem organizado um grupo interministerial de discussão sobre o tema. Espera-se que dali saiam propostas efetivas para lidar com as bets e, assim, minimizar o sofrimento da população com esses jogos. 


Embora seja um bom início, as iniciativas não devem parar por aí e precisam envolver amplamente a sociedade civil, especialmente os grupos mais afetados. O tópico não é simples e extrapola o direito. Qualquer medida voltada ao tratamento adequado do problema deve levar em conta as questões sociais que envolvem as apostas online e suas implicações na saúde pública.


As opiniões expressas neste artigo são de exclusiva responsabilidade do(a) autor(a) e não representam, necessariamente, a posição da Gazeta Arcadas sobre o tema. Somos um veículo plural, composto por pessoas com diferentes perspectivas políticas, e prezamos pelo respeito à diversidade e à democracia.


Texto revisado e editado por Ricardo Bianco.

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