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Crise à Florentina

  • Beatriz Brichucka
  • 29 de out. de 2024
  • 4 min de leitura

Entenda como a ambição de um rei precipitou a primeira grande crise sistêmica da história.


Um florim, moeda medieval emitida pela República Florentina.
Ilustração: Vinicius Demarzo

Beatriz Brichucka


Governos quebrados, bancos insolventes, escassez de liquidez e pânico entre depositantes. Esses elementos não surgiram com a derrocada do Lehman Brothers em 2008 ou com o crash de Wall Street em 1929.


Em vez disso, encontramos as origens deles no coração da Florença medieval, um dos principais centros financeiros e comerciais da Europa. Foi ali que a ruína das famílias bancárias Peruzzi e Bardi, até então símbolos de solidez financeira, expôs a vulnerabilidade do sistema de crédito ao choque de inadimplência. O colapso dessas instituições marcou a história econômica europeia e deu início a uma nova era de crises sistêmicas.


Quando os primeiros empréstimos bancários se disseminaram na Itália, o crédito era primordialmente direcionado ao financiamento das colheitas, cujos resultados eram visíveis nos campos e podiam ser, de alguma forma, avaliados financeiramente. No entanto, em pouco tempo, o financiamento de guerras tornou-se uma parte significativa das atividades bancárias, agora mais arriscadas.


Em meados de 1337, Eduardo III da Inglaterra lançou a reivindicação ao trono da França, desafiando o rei francês Filipe VI de Valois. As tensões, que haviam passado anos em fermentação, explodiram em batalhas nas fronteiras e marcaram o início da Guerra dos Cem Anos. O prelúdio de uma era que deixaria rastros tanto nas dinastias quanto na moeda.


O governo do rei inglês foi marcado por uma gestão desastrosa dos recursos públicos. Após ascender ao trono em 1327, Eduardo III engajou-se em diversas campanhas militares, incluindo a luta contra os escoceses e, a partir de 1337, o conflito que duraria mais de um século. Essas iniciativas belicosas drenaram rapidamente os cofres do reino.


Eduardo III precisou encontrar uma maneira de financiar os esforços de guerra. Os mercadores italianos, que frequentemente estavam em seus domínios comprando a lã inglesa para as fábricas de tecidos de Florença, podiam ajudá-lo. Afinal, eles já eram famosos banqueiros com filiais em toda a Europa e não poderiam ter garantia melhor que o nome de Eduardo III, o rei da Inglaterra.


As duas maiores casas bancárias de Florença, os Peruzzi e os Bardi, concordaram em conceder crédito ao rei beligerante. No entanto, comissões, juros e multas aumentaram rapidamente o valor devido. Em pouco tempo, a dívida chegou a um milhão e meio de florins de ouro — uma quantia exorbitante, mesmo para um rei. A situação se agravou porque a Guerra dos Cem Anos, na qual o monarca estava atolado, não gerava conquistas territoriais significativas, e assim não havia novas receitas.


Fato é que o prestígio de Eduardo III começou a desmoronar, e a crise de confiança atingiu também os dois gigantes das finanças florentinas. A percepção de que os bancos estavam à beira da ruína era tão forte que, em 1339, o papa Bento XII decidiu encerrar o uso dos serviços dos Bardi e dos Peruzzi, que, até então, administravam as finanças do papado. Como temido, Eduardo III recusou-se a pagar as dívidas e formalizou a inadimplência em 1342. De fato, o rei havia declarado o famigerado default.


A insolvência de Eduardo III intensificou o medo de uma iminente crise de liquidez nas instituições dos Bardi e Peruzzi. Esse temor incluía, além dos depositantes comuns, figuras proeminentes, como o rei de Nápoles, Carlos de Anjou, e a nobreza napolitana, que mantinham volumosos depósitos nos bancos florentinos. Historicamente, os mercadores de Florença já haviam desempenhado papel fundamental na conquista do Reino de Nápoles por Carlos de Anjou, em troca de privilégios comerciais significativos.

 

As companhias bancárias florentinas, já percebidas como à beira do colapso, logo foram alvo de uma crescente desconfiança entre depositantes. Grandes e pequenos investidores correram para retirar os depósitos, de modo a suscitar um dos primeiros episódios de corrida bancária na história. Em poucos meses, as principais instituições florentinas ficaram sem liquidez, abarrotadas de  empréstimos arriscados e sem lastro. Como naquela época as casas bancárias também operavam com alavancagem e concediam crédito em valores superiores aos depósitos, o colapso foi inevitável: os Peruzzi colapsaram em 1343, e os Bardi, em 1346.


A crise desencadeou um efeito dominó. Grandes instituições financeiras caíram e arrastaram consigo outros setores. Artesãos, comerciantes e empresários viram seus negócios em ruína, enquanto o mercado imobiliário desmoronava. Pequenos poupadores, que haviam confiado economias às outrora sólidas e prestigiadas casas bancárias de Florença, assistiram impotentes à evaporação de seus fundos.


O otimismo inicial com a expansão financeira deu lugar a uma depressão generalizada, agravada quando o próprio Comune de Florença declarou incapacidade de honrar os títulos públicos. Após a queda dos Bardi e dos Peruzzi, que dominavam grande parte do comércio, “não restava quase mais moeda entre nossos cidadãos”, conforme relatou o mercador Giovanni Villani.


Segundo ele, nunca antes Florença havia experimentado uma ruína tão devastadora, nem mesmo em tempos de guerra. A crise foi exacerbada por uma série de inundações que destruiu as colheitas de 1346, seguida pela Peste Negra em 1348, que reduziu a população de 90 mil para 45 mil habitantes.


À medida que a economia iniciava um novo ciclo de expansão, sinais de especulação e crises em larga escala voltaram a emergir no cenário europeu. Em Florença, o vazio de poder e influência deixado pelo colapso dos Bardi e Peruzzi logo seria ocupado pela ascensão da família Médici, que redefiniria o centro financeiro da cidade.


Antes do colapso, a influência das duas famílias era tanta que Beatriz Portinari, musa inspiradora de Dante, casou-se com um membro da família Bardi. Mas a glória dessas casas foi efêmera; já as dívidas contraídas, essas permaneceram, sem jamais serem quitadas.


As opiniões expressas neste artigo são de exclusiva responsabilidade do(a) autor(a) e não representam, necessariamente, a posição da Gazeta Arcadas sobre o tema. Somos um veículo plural, composto por pessoas com diferentes perspectivas políticas, e prezamos pelo respeito à diversidade e à democracia.


Texto revisado e editado por Ricardo Bianco.


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