Discreta epopeia da vida contemporânea
- Isabella Ferrarese
- 25 de ago. de 2024
- 3 min de leitura

“Agora é minha vez. A história de uma das minhas loucuras” — Delírios II, Arthur Rimbaud
Esfacelam minhas aventuras como sangram os sonhos dos que sonham
Exaltação, louvação demagógica
Eu me deixo levar, ah como eu me perco
nessas diatribes de gesto que me deixam sem palavras!
Se tratava de um indissimulável desprezo pela massamorda humana sedenta pela mais laboriosa genialidade capitalizada em formato dos mais insofismáveis sofismas
Como a mídia preenche a minha vida! Como eu me consubstancio com a multidão!
Mas divago. Sim sobre minha aventura, sim
Ela começava como começam as grandes discretas epopeias da vida contemporânea
Eu pensava nas grandes aventuras clássicas
Nos mares profundos, nas criaturas quiméricas, na glória voluptuosa
Eu fechava os olhos, me perdia em sonhos distantes e assim que os abria me via atravessando o mais monumental dos engarrafamentos modernos!
Toda a minha motivação era então alimentada pelo odioso movimento dos exaltados e pelos elogiosos comentários alheios
Todo dia era, em verdade, uma aventura, de forma que eu não conto uma aventura em específico e sim a essência de todas essas ditas loucuras
Difícil, nos tempos de então, era reencontrar minhas verdadeiras personalidades naquelas searas tão pitorescas
Poderia fazer qualquer coisa, me tornar qualquer pessoa, e o impensável era tortuoso de se pensar
O mundo se abria, concebiam-se mil ideias
Mas me apegava ao passado e as lágrimas vertiam copiosamente
Chorava pelo imprevisível, louco e imaginado destino que escapou das minhas cuidadosas mãos
Desferimentos de ataques calculados pela superindustria do imaginário
Mesmo as mais insignificantes trivialidades me lembravam dos meus grandes feitos, joias passadas e indeliberações futuras
E os insofismáveis sofismas marcavam uma presença de época nas aventuras de então Ah, mas como me soavam de uma nefasticidade ímpar esses insofismáveis sofismas das pífias personalidades de renome!
Haviam dias que matavam
Os mistérios que se pensavam muito antigos se desvelavam de uma só vez na minha frente
Por onde andava a graça?
A graça se debatia em barrancos mortais e os mistérios de outrora não eram de tamanha envergadura
Ah, como eu me decepcionava com o desdouro do cotidiano e com as historinhas de aventurinhas de ônibus e de cidade!
E quando me vinham com essas grandes pequenas histórias, eu já não mais deixava transparecer meus besteiróis usuais
Autocensura
Quando vinham com os insofismáveis sofismas eu fazia questão de sofismar o insofismável
Afinal, com um gênio desses, precisamente tudo era possível, e quem seria aquele a me contrariar?
Da janela do meu pobre ônibus tinha um assento direto ao fim das minhas aventuras, das minhas historinhas
Foi isso que me aconteceu, uma genuína promessa de fim dos tempos, aventuras
Sonhos se desgastavam com um mero suspiro, com um meríssimo comentário
Quaisquer grandes feitos, quaisquer estátuas, quaisquer nomes soavam cobertos pela humanidade nas suas lágrimas e decadência mais patéticas
O vermelho e o preto se misturavam sem mais mistérios
Pouco me impressionava
E meus contos eram, então, das minhas remotas aventuras cuja só a memória atestava sua vivacidade
De tempos remotos observava minha ingenuidade acenar cada vez mais longe
Mas os tempos de crises chegam ao fim
Nada mais é realmente insustentável
E, de desgraçada natureza, tudo é insuportavelmente suportável
Chegava, ao fim das minhas desventuras, à minha Ítaca contemporânea!
Eu chegava então em um singelo ônibus à minha romântica faculdade…
É, é mesmo, minha aventura não se passava de umas questões de existência…
O texto joga com a ironia, o lirismo e o desespero, numa tentativa de dar voz a uma geração sufocada pela monotonia e pelo prosaísmo do mundo moderno.