O mal que nasceu na São Francisco
- Victor R. Savioli Filho

- 21 de jul. de 2021
- 6 min de leitura
Atualizado: 12 de dez. de 2024
Outubro de 1968, arredores do prédio da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. A Rua Maria Antônia serviu de palco para um sangrento confronto entre alunos da USP adversos à ditadura e estudantes mackenzistas ligados ao Comando de Caça aos Comunistas, no episódio que ficou conhecido como "Batalha da Maria Antônia". Este e outros encontros entre a resistência uspiana e integrantes do CCC ficaram heroicamente marcados na história de nossa universidade. O que não é tão falado, no entanto, é que essa violenta organização, apoiadora do regime militar, nasceu no seio da Universidade de São Paulo. Dentro de nossas Arcadas.
A organização foi fundada, em 1964, por Raul Nogueira de Lima, João Marcos Monteiro Flaquer, estudante do Largo São Francisco, e Otávio Moreira Júnior, franciscano que viria a ser delegado do DOI-Codi. Segundo o depoimento dos estudantes no livro "Autópsia do Medo" (2000), o movimento, que se originou na busca de estudantes franciscanos por combate aos coletivos de esquerda da FDUSP, chegou a contar com mais de 150 estudantes de diversas instituições paulistanas, principalmente após a integração de grupos de extrema-direita como o “Canalha” do Colégio Mackenzie e o “Matadores” das Arcadas.
O Comando foi diretamente envolvido com os movimentos e manifestações que levaram à deposição de João Goulart, já nos seus primeiros meses de atividade. Formado por estudantes das elites paulistanas, e agora com apoio do governo ditatorial do presidente Castelo Branco, o CCC não demorou a ser influente não só fora do meio universitário como de São Paulo. Apenas alguns meses depois, a Rádio Nacional e a TV Excelsior, ocupadas pela polícia estadual em prol de uma suposta "comunicação patriótica", foi pelo governo passada à força para a mão de jornalistas ligados ao Comando. Universidade, mídia, governo e mercado estavam sob a vigilância do CCC.
A ditadura mostrou suas presas logo de cara. Os movimentos democráticos, sendo de esquerda ou não, foram reduzidos à força a reuniões secretas e palavras codificadas. O medo constante assombrava todas as esferas da sociedade em que houvesse qualquer cidadão inspirando a um retorno da Democracia. O Comando de Caça aos Comunistas não tinha mais motivos para agir. O pensamento e seus ideais já haviam sido espalhados por toda a capital paulista, especialmente nas universidades, onde o grupo mantinha recrutamento. Como se fosse qualquer entidade ou grupo de estudos, o CCC formava advogados, médicos, delegados, químicos e muito mais sem precisar de grandes articulações.
Quatro anos se passaram. O regime militar mostrava-se cada vez mais autoritário: Atos Institucionais reduziam as liberdades civis enquanto economistas da posição traçavam um plano que levaria o Brasil a um milagre econômico que gerou riquezas estratosféricas para as elites do Sul e Sudeste, enquanto a maior parte da população passava necessidades básicas ou era violentamente reprimida pelas forças do exército e da polícia. Uma chama de esperança, contudo, surgiu onde o costuma fazer: no ensino. Por debaixo dos panos, professores, universitários e estudantes de ensino médio participaram de secretas rodas de estudos sobre Democracia e direitos. Nas universidades, principalmente, os grupos de esquerda começaram a se movimentar pensando na revolução, inspirados nos recentes protestos na França ditatorial.

Contudo, o constante pensamento autoritário de extrema-direita que era passado nas reuniões universitárias do que sobrou do CCC surtiu efeito. Tomando noção dos planos dos grupos de esquerda, estudantes espalharam a mensagem sobre a possibilidade de um levante revolucionário, alertando inclusive integrantes mais antigos do Comando. Foi quando, em uma carta direcionada ao governador de São Paulo, Roberto Sodré, o grupo anunciou oficialmente sua volta à atividade em decorrência de uma omissão do governo em face de um suposto “avanço comunista". O ano era 1968, mas não trataremos ainda da Batalha da Maria Antônia, há um grande evento - anterior ao conflito - que precisamos falar sobre: a ocupação da Sanfran pela resistência estudantil.
Era 23 de junho do já conhecido ano, domingo, e o Velho Centro paulistano encontrava-se pouco movimentado, como era de se esperar para uma manhã dominical. Exceção a isso era a Rua Riachuelo. Membros do Centro Acadêmico XI de Agosto podiam frequentemente ser vistos entrando e saindo do Porão (caloures, em breve vocês saberão onde fica). Não havia mais tolerância, os estudantes da resistência teriam que se movimentar contra a ditadura, e precisaria ser imediatamente. Foi convocada uma assembleia secreta, que acabou reunindo um grande número de franciscanos de confiança, conforme relatado em "Arcadas no Tempo da Ditadura" (2007), escrito em uma parceria de 57 antigos estudantes das Arcadas.
O resultado da assembleia não poderia ser outro: ocupação da Faculdade pelos estudantes, e uma chama de esperança cada vez mais acesa de que aquilo seria o gatilho da revolução. Não demorou, é claro, para que a repressão chegasse. O CCC trouxe aos portões das Arcadas a Polícia Militar e o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). Sua invasão, conquanto, demorou a ser sucedida. Os estudantes eram resistentes e permitiam somente a entrada do necessário e de professores favoráveis como Goffredo da Silva Telles, Fábio Comparato, Botelho de Mesquita e até mesmo Boris Schnaiderman, professor na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras localizada na Rua Maria Antônia.
A ocupação só terminou três meses depois, pela via judicial, com o CCC e os apoiadores invadindo a faculdade e levando os estudantes para o DEOPS (Departamento de Ordem Política e Social), onde enfrentaram violento inquérito policial. Os líderes da manifestação, inclusive, foram após liberação expulsos e colocados como persona non grata na faculdade. Era, contudo, tarde demais; aquela ocupação ativou outros grupos de resistência, em outras faculdades da USP e também em outras universidades. O governo militar e os integrantes do CCC não tinham mais o controle social que atingiram em anos anteriores. A repressão violenta era agora respondida com violência, o que gradativamente banalizou conflitos agressivos em faculdades. Demorou poucos dias até que um estudante fosse morto: José Guimarães, na Rua Maria Antônia.

Durante um pedágio organizado pelos estudantes da FFCL na já tão citada rua, com objetivo de arrecadar fundos para o Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), foi iniciado um conflito com estudantes da Mackenzie (que encontrava-se do outro lado da calçada). Há diversas versões para a origem do conflito, não se sabe ao certo sequer quem o iniciou. Daremos importância aqui, então, ao seu desenrolar e - principalmente - ao que se sucedeu desse embate.
Um conflito entre estudantes da USP, representantes da UNE, e estudantes da historicamente elitista Mackenzie era a oportunidade perfeita. O CCC não deixou passar. Poucas horas após iniciada a batalha, já poderiam ser vistos estudantes de outras instituições participando ao lado da FFCL, enquanto estudantes do CCC atuavam em parceria com os estudantes mackenzistas. O conflito deixou de ser travado com punhos e rajadas de ovos, agora bombas e coquetéis "molotov" eram arremessados. A chegada da polícia não adiantou, ouviam-se então disparos de armas em busca de fazer o tumulto recuar. Um infeliz erro.
Segundo relatos, posteriormente comprovados por imagens, durante a confusão foi possível ouvir um disparo mais próximo do conflito. Era Ricardo Osni Silva Pinto, estudante de Direito e membro do CCC, que atirava com um fuzil de cima do telhado da Universidade Mackenzie e acertava o secundarista José Guimarães, do Colégio Marina Cintra, na cabeça. O tumulto foi silenciado. José foi imediatamente socorrido por colegas e levado ao Hospital das Clínicas, dando entrada às 15h15 do dia 03 de outubro de 1968, morto. Ricardo Osni, um ano antes, já havia se envolvido em um conflito violento, daquela vez entre estudantes mackenzistas. Ricardo seguiu livre, e foi apontado como assassino de José Guimarães somente quarenta anos depois, pela comissão da verdade.
O CCC, organização antidemocrática que dizia lutar a favor de uma democracia (sabe-se lá Deus qual), causou diretamente a morte de estudantes, o fim das liberdades civis e apoiou um regime militar que durou 21 anos em nosso país, causando indiretamente a morte de outras milhares de pessoas. A alma dessa organização nasceu na Faculdade de Direito da USP, local onde todos vocês que leem já se sentaram ou irão fazê-lo. Que sirva de alerta. Que seja um ponto de reflexão sobre o que queremos para nosso futuro e sobre o que fazemos com nosso presente. A universidade deve ser um ambiente de debate, e qualquer movimentação que objetive o fim desse debate não pode ser considerada como inofensiva.
É responsabilidade dos estudantes, sejam de esquerda, direita ou centro, lutar contra organizações antidemocráticas, paramilitares e violentas como o CCC. Seus integrantes seguem vivos, livres para passar à frente seu ódio e métodos violentos. Advogando, sendo médicos, trabalhando na máquina pública, dando aula em instituições de ensino. Sempre que perceber tais pensamentos sendo propagados, demonstre sua insatisfação, enfrente e denuncie quem estiver contra sua existência, sua liberdade e seus direitos. Faça como nossos colegas franciscanos de 1968, que acenderam a fagulha da revolução: resista.
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Fontes:
"Comando de Caça aos Comunistas". Verbetes, Fundação Getúlio Vargas. Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/comando-de-caca-aos-comunistas-ccc>.
"José Guimarães". Portal da Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo. Disponível em: <http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/mortos-desaparecidos/jose-guimaraes>.
"De repente, violência". Almanaque Folha, 1967. Disponível em: <http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_27out1967.htm>.
"23 de junho de 1968 – 23 de junho de 2018 – 50 anos da Tomada da Faculdade de Direito da USP". CM SANTOS, Antônio. Portal migalhas. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/amp/depeso/282668/23-de-junho-de-1968---23-de-junho-de-2018---50-anos-da-tomada-da-faculdade-de-direito-da-usp>.
"Parlamentares Gaúchos: João Goulart". Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul 2004.
"O Comando de Caça aos Comunistas (CCC): do estudante ao terrorista (1963-1980)". LIMA, Danielle. PUC-SP, Mestrado em Educação: História, Política, Sociedade, 2020.



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