“Tempos Fraturados”: a captura do contemporâneo entre telas e digitais
- Letícia Fumes
- 18 de out. de 2024
- 5 min de leitura

O tempo sempre foi para a humanidade um objeto de desejo, seja em termos de controle ou de mera observação inquietante sobre algo que, implacavelmente, atravessa nossas vidas. No campo artístico, um quadro representa uma espécie de interpretação sobre o tempo envolto nos olhares do artista, o que, historicamente, concedeu-nos temáticas significativamente distintas, que perpassam desde a enigmática Monalisa até os famosos quadros que integram o estilo “natureza-morta”.
Por outro lado, a relação dos indivíduos com o tempo, intercambiada pela realização artística, modificou-se profundamente com o advento da fotografia, que permitiu uma apreensão temporal não mais nos contornos da interpretação, e sim por uma perspectiva de recorte, de captura. Como sabiamente dito pela filósofa Susan Sontag, em sua brilhante obra “Sobre a Fotografia”, as imagens são pedaços do mundo, são “miniaturas da realidade que qualquer um pode fazer ou adquirir”.
E é seguindo essa mescla instigante entre quadros e fotografias que a exposição de longa duração do MAC USP, “Tempos Fraturados”, delineia-se. Apesar de uma disposição espacial que direciona seus espectadores através da famosa sequência começo, meio e fim, a nomeação neste caso não é apenas uma questão de estética. A ideia de uma fratura é fundamental para que o observador compreenda e sensibilize-se com as possibilidades infindas oferecidas por uma disposição não linear de obras (que, além disso, estão cercadas por igualmente notáveis esculturas).
Localizada nos dois últimos andares do edifício, a exposição abraça a arquitetura local e usufrui de maneira muito inteligente das brechas para o mistério, oferecidas pelas paredes que dividem o espaço. Assim, caminhar através dos “Tempos Fraturados” possibilita a experiência de esbarrar com paredes brancas que, aparentemente, indicam uma mera separação material entre obras ou um alerta de “pare, a exposição acaba aqui” e, então, mediante a coragem de enfrentar o óbvio, contornando o obstáculo à frente, encontrar um novo quadro, intencionalmente escondido. Essa feliz descoberta é quase um chamado à célebre frase de José Saramago: Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. É precisamente isso que a arte requer: coragem, esforço e reparação, que existem apenas e tão somente por meio de uma via de mão dupla. Um quadro ou uma fotografia nunca lhe dirão nada se você não estiver disposto a conversar na linguagem única que surge desse encontro pessoal, cabe ao sujeito observador despertar e descobrir a autonomia do objeto observado.
Destaco ainda que, nesse texto, as palavras que compõem o título “telas” e “digitais” devem ser compreendidas sob uma ótica polissêmica, na qual a primeira refere-se tanto às telas sobre as quais os quadros tradicionais são feitos, quanto às telas pelas quais o fotógrafo pode observar o tempo-espaço a sua volta passível de captura. A segunda acompanha o mesmo passo: são as digitais do artista que segura o pincel ou qualquer que seja o instrumento para a realização da obra de arte, e são também as câmeras digitais pelas quais o mundo contemporâneo é observado.
Retornando à exposição, destaco a marcante fotografia na qual um homem é registrado sob pleno estado de tristeza, misturada possivelmente com revolta. Colocações essas que faço exclusivamente guiada pelo nome da série “O enterro de Barrientes” (fotografada por Cristiano Mascaro), da qual a foto faz parte, isto é, tratam-se de conclusões atentas precisamente àquilo que a própria composição me oferece. Preconcepções acompanham, é claro, minha interpretação, por exemplo a ideia de que somente uma foto em preto e branco poderia expressar tão plena e profundamente um sentimento não alegre. De outro modo, todas as narrativas viáveis poderiam estar alinhadas à possibilidade de investigar mais a fundo o contexto no qual tal composição foi criada, buscando por informações da pessoa registrada, do acontecimento que fundamentou a reação captada pelo fotógrafo, enfim, todo um trabalho que sucede a visita à exposição.

No entanto, o objetivo (igualmente reiterado nesta análise) da exibição encontrada no museu, é expor a perspicácia de compreender que o trabalho da fotografia não é, necessariamente, criar o espaço, mas sim aprisionar a curta temporalidade que lhe está presente. Nesse sentido, ao observador, cabe apreender a apreensão, cuja simbologia encontra-se no movimento de buscar quais revelações surgem, em sua experiência individual, mediante um primeiro olhar sensível e imediato sobre o retrato. É preciso agir como um perito, que primeiro colhe os indícios, os rastros e as superficialidades para, então, construir hipóteses mais concretas. O que seu coração imagina e por qual razão sua mente pulsa ao encarar essa imagem?
Agora, repousando as ideias nos quadros que compõem o conjunto, relembro um deles, em específico, que me prendeu de modo impressionante. Trata-se da obra “La desaparición de”, do artista Luis Camnitzer, que em seu interior não apresenta a quem lhe observa nada além da mesma frase, escrita por uma caneta nanquim sobre um papel milimetrado. O que à primeira vista surge com um viés de incompletude, ascende a um patamar de inevitabilidade. Se, de imediato, buscamos por um referencial que se encaixe na frase, imersos no decorrer do tempo, percebemos que inúmeros objetos referenciáveis seriam adequados, afinal, a tendência do tempo presente é para sempre, desaparecer. Como pode, então, a efemeridade, que é característica de todo tempo assimilado enquanto contemporâneo, ser fotografada por meio de um quadro?

Todo esse quiasma de sentidos concedido pela exposição, que nos direciona à consciência de pertencermos a um tempo eternamente “fraturado”, revela a potencialidade de crer e de conviver com a fotografia, de modo que ela se comporte como “o mundo-imagem, que promete sobreviver a todos nós” (outra referência à Sontag). Talvez uma câmera nos presenteie com essa sensação, que é de fato e tão somente uma sensação, ainda que enquadrada, alterada por filtros e ajustes de luz instrumentalizados. Além de nos impor a quadros que, para além de interpretar o mundo, sugerem e permitem observações tão incontroláveis e irremediáveis quanto a própria passagem do tempo.
Em outras palavras, a composição de um quadro sugere um movimento de longe para perto, é o contemporâneo diante do artista contornado no espaçamento oferecido por uma tela. Já uma foto, sugere um deslocamento oposto, mas não contrário, por meio do qual a tela é o primeiro referencial, que observa a dimensão espacial do tempo e, em questão de segundos, aprisiona a efemeridade à sua volta. Há de fato, um eco paradoxal, que oscila entre completude e ausência, entre as digitais de quem imprime materialmente sua perspectiva em uma superfície e os olhares digitalizados que perpassam toda a tecnologia de uma câmera.
A exposição “Tempos Fraturados”, cuja curadoria pertence à Helouise Costa, Ana Gonçalves Magalhães, Priscila Arantes, Felipe Chaimovich e Marta Vieira Bogéa, estreou em 2023 e continuará até março de 2028, localizada no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP). O acervo pode ser acessado, em partes, através do site, no entanto, nada supera o vislumbre de estar, presencialmente, anestesiado por uma obra capaz de provocar a sensação de que, por alguns instantes, capturamos algo do tempo à nossa volta.
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