Twin Peaks no Brasil: Novas Fronteiras para a Regulação Financeira?
- Beatriz Brichucka
- 19 de ago. de 2024
- 8 min de leitura
Atualizado: 19 de ago. de 2024
Reguladores enfrentam o desafio de implementar um modelo robusto sem cair em soluções fáceis e ilusórias.

Beatriz Brichucka
O modelo regulatório Twin Peaks (ou “Dois Picos”) surgiu no final dos anos 1990, em resposta à crescente complexidade dos conglomerados financeiros e à diluição das fronteiras entre os mercados bancário e de capitais.
Assim como a série Twin Peaks de David Lynch, que explora a dualidade entre dois mundos, este arquétipo regulatório propõe uma divisão da supervisão e da regulação em dois universos: a regulação prudencial, focada na estabilidade e solidez das instituições financeiras e a regulação de conduta, que visa proteger consumidores e garantir a integridade dos mercados.
A essência do Twin Peaks reside na convicção de que a separação das responsabilidades regulatórias, de acordo com o tipo de supervisão, resulta em uma regulação mais eficaz. Ao alocar reguladores especializados para lidar com as diferentes falhas de mercado que surgem em contextos específicos, o modelo busca evitar os problemas associados à sobreposição de competências entre diversos reguladores.
A Austrália foi a primeira a implementar o Twin Peaks em 1998. Posteriormente, países como Holanda, Reino Unido e África do Sul seguiram o exemplo, com adaptações às suas realidades nacionais. Foi após a crise financeira de 2008 que o modelo ganhou maior destaque internacional, quando se tornaram evidentes as limitações das estruturas regulatórias tradicionais para antecipar e controlar o risco sistêmico nos mercados financeiro e de capitais.
No caso específico do Reino Unido, o ano de 2008 revelou falhas na estrutura de regulador único, então centralizado na Financial Services Authority (FSA). À época, havia consenso de que a FSA priorizava a regulação de conduta em detrimento da prudencial, negligenciando sinais de acúmulo de riscos em instituições como o Northern Rock e o Royal Bank of Scotland.
Como resposta, nos anos seguintes, o Reino Unido revisou sua abordagem e adotou uma versão do Twin Peaks que dividiu a FSA em duas novas entidades: a Prudential Regulatory Authority (PRA), responsável pela regulação prudencial, e a Financial Conduct Authority (FCA), encarregada da supervisão de conduta.
Essa mudança não apenas consolidou o Twin Peaks como uma estrutura conceituada para enfrentar os desafios da regulação financeira moderna, mas também influenciou outras jurisdições a reconsiderar suas próprias abordagens regulatórias.
No Brasil, a proposta de adoção do modelo Twin Peaks está em discussão no âmbito do Ministério da Fazenda. O plano prevê a transformação do Banco Central (BCB) e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) em super-reguladores, encarregados de supervisionar, respectivamente, as questões prudenciais e de conduta.
A implementação dessa proposta, ainda em fase preliminar, promete ser gradual para minimizar impactos sobre as instituições financeiras. Em uma primeira etapa, a Superintendência de Seguros Privados (Susep) seria incorporada ao Banco Central, fortalecendo a capacidade de supervisão prudencial.
Posteriormente, a CVM receberia competências adicionais, criando um sistema regulatório e uma supervisão mais uniforme. Estuda-se, também, a diluição da competência da Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc).
O redesenho é fundamental, já que Susep, Previc, BCB e CVM atuam hoje em ambos os picos regulatórios, o que pode gerar sobreposições. Um exemplo disso é a área de Prevenção à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo (PLDFT), na qual CVM, BCB e Susep normatizam e supervisionam de forma segregada. Embora as normas sejam semelhantes em essência, suas diferenças geram incertezas, pois os agentes de mercado encontram dificuldades para cumpri-las de maneira integrada.
Flávio Bocater, sócio do Bocater Advogados, adota uma postura crítica em relação à proposta de diluição da Susep e da Previc no modelo Twin Peaks. Bocater argumenta que essa integração coloca no mesmo ambiente de regulação instituições que possuem naturezas e preocupações fundamentalmente distintas.
Enquanto os bancos enfrentam desafios em termos de liquidez, essa preocupação não é tão proeminente no setor de seguros e nos fundos de pensão. Para ele, agrupar essas entidades sob um único arquétipo pode ignorar essas diferenças, comprometendo a eficácia da supervisão em áreas que exigem abordagens especializadas.
Otavio Yazbek, ex-diretor da CVM e antigo defensor do modelo Twin Peaks, argumenta que o modelo permite administrar as sobreposições de forma mais eficiente. Ele vê no Brasil um Twin Peaks embrionário, em que o BCB e a CVM já funcionam como os dois principais picos regulatórios. Yazbek reconhece que o país possui os fundamentos necessários para o Twin Peaks, mas ressalta que sua efetividade plena depende do reconhecimento formal em lei e de ajustes significativos na coordenação entre essas instituições.
Armínio Fraga, ex-presidente do BC, também elogia a proposta, mas faz um alerta importante sobre o aspecto orçamentário. Para Fraga, a eficácia do Twin Peaks no Brasil está intimamente ligada à questão da autonomia financeira dos reguladores. Isso porque a CVM sofre há muito tempo com a falta de recursos, o que exacerba o risco regulatório.
Fraga menciona que, hoje, o valor arrecadado com taxas e multas pela CVM é destinado ao Tesouro. Embora a CVM acumule cerca de 1 bilhão de reais por ano com cobrança de taxas, o seu orçamento discricionário é limitado a 30 milhões de reais.
Marcelo Barbosa, outro ex-presidente da CVM, compartilha da mesma preocupação e enfatiza que onde o Twin Peaks foi bem-sucedido, isso se deveu ao apoio de recursos humanos e financeiros adequados. Barbosa defende que o valor arrecadado pelo regulador, atualmente destinado ao Tesouro, deveria ser revertido diretamente para o financiamento da própria CVM.
Enquanto a CVM enfrenta uma escassez crítica de recursos para manter e expandir suas atividades, o BCB não sofre da mesma urgência financeira. Embora o BCB também tenha limitações orçamentárias, a situação da CVM é significativamente mais precária. Para que o modelo Twin Peaks seja implementado com sucesso, é crucial que ambos os polos estejam adequadamente equipados para cumprir suas respectivas funções.
Fato é que o Twin Peaks não está isento de desafios. Além da questão orçamentária, um dos principais riscos está na necessidade de coordenação e comunicação entre os dois picos. Isso porque as fronteiras entre regulação prudencial e de conduta podem não ser tão claras. Por exemplo, ambas estabelecem requisitos sobre a divulgação de informações, impõem requisitos de governança e podem exigir políticas de gestão de risco como parte dos requisitos de licenciamento.
Essa falta de clareza pode levar a conflitos entre as decisões prudenciais e as exigências de conduta. A título de exemplo, a necessidade de recapitalizar uma instituição financeira para manter sua estabilidade pode entrar em choque com demandas de transparência e divulgação impostas pela regulação de conduta. Tais conflitos podem criar situações paradoxais em que medidas necessárias para assegurar a estabilidade acabem, inadvertidamente, por desestabilizar a própria instituição.
Para o Twin Peaks, a experiência australiana serve de alerta. Naquele país, a implementação do modelo revelou problemas significativos de coordenação entre as novas agências regulatórias, a Australian Prudential Regulatory Authority (APRA) e a Australian Securities and Investments Commission (ASIC). A interação entre elas foi particularmente complicada em áreas com sobreposição de responsabilidades, trazendo à tona a necessidade de uma coordenação eficaz entre os reguladores.
Além disso, a Austrália enfrentou desafios na supervisão de instituições, serviços e produtos à margem da regulação, como as infraestruturas de mercado e os shadow banks. A crise de 2008 destacou os riscos sistêmicos associados, em especial, aos derivativos de balcão (over-the-counter, OTC), que, sem a devida atenção das agências reguladoras, permitiram que a crise se propagasse rapidamente pelo sistema financeiro internacional.
Outro escândalo no modelo australiano incluiu o colapso em 2001 de uma grande e significativa seguradora – HIH Insurance – sob a supervisão da APRA. Uma das maiores seguradoras do país, a HIH foi à falência devido à má gestão, práticas contábeis duvidosas e supervisão regulatória insuficiente. A APRA, responsável pela supervisão prudencial, foi duramente criticada por sua atuação, expondo as fragilidades do sistema regulatório da época.
No entanto, esse fracasso impulsionou uma reforma que fortaleceu a APRA como regulador. Embora a queda da HIH tenha inicialmente prejudicado a reputação da APRA, ela pavimentou o caminho para uma estrutura prudencial mais sólida, que foi crucial para a resiliência do sistema financeiro australiano durante a crise de 2008.
O colapso da HIH destacou os riscos associados a períodos de mudança institucional, como a distração da gestão e a perda de habilidades e memória institucional. Essas lições se mostraram especialmente relevantes na transição para o modelo Twin Peaks em outros países.
Os desafios não se limitam ao passado. Na última década, o surgimento de novos setores e tecnologias tem colocado à prova a capacidade dos reguladores de supervisionar eficazmente o sistema financeiro. Empresas dos mais diversos ramos passam a fazer incursões no mercado de pagamentos e na distribuição de produtos de crédito e seguros.
O surgimento do crowdfunding e do peer-to-peer lending também criou alternativas aos sistemas tradicionais, desafiando a capacidade dos reguladores de manter a supervisão prudencial e de conduta. Esses novos atores, via de regra, escapam ao escrutínio regulatório convencional.
Por outro lado, um dos pontos fortes da arquitetura Twin Peaks, conforme experiência australiana, é a sua ênfase na regulação com base nos produtos e serviços oferecidos, em vez de se concentrar exclusivamente nos tipos institucionais.
Essa abordagem pode reduzir significativamente três problemas ligados a esse modelo regulatório:a capacidade de escolha de formas societárias que possam escapar da supervisão e da regulação, a zona cinzenta, na qual não se sabe se uma instituição está ou não submetida à regulação e a necessidade de nova regulação sempre que um mesmo produto ou serviço passa a ser oferecido por um ente não tradicional.
Na Austrália, por exemplo, a APRA licencia a atividade de captação de depósitos à vista, sem restringi-la a instituições financeiras tradicionais. Em contraposição, no contexto brasileiro, a captação de depósitos é restrita a instituições financeiras autorizadas pelo BCB, que recebem recursos de clientes sob a forma de depósitos à vista, a prazo (como CDBs) ou em poupança, utilizando-os para conceder empréstimos ou investir em ativos, enquanto mantêm uma parte como reserva para saques. No entanto, algumas instituições não financeiras têm encontrado maneiras de se aproximar dessa função, explorando lacunas regulatórias.
Um exemplo emblemático dessa prática é o programa Starbucks Rewards, que vigorava até pouco tempo no Brasil, mas tem maior proeminência nos Estados Unidos. O programa permite que clientes carreguem dinheiro em contas pré-pagas. Na prática, as recargas funcionam como depósitos. Com isso, são criados fundos que oferecem à empresa uma linha de crédito sem juros e sem a supervisão imposta a uma instituição financeira tradicional. O Starbucks detinha, já em 2016, mais dinheiro em caixa do que muitos bancos tradicionais.
À vista disso, passou-se a dizer que o Starbucks opera mais como um banco do que como uma cafeteria. E, se banco fosse, o Starbucks estaria entre as maiores instituições financeiras dos Estados Unidos em termos de depósitos, superando 90% das instituições financeiras cobertas pela Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC) nos Estados Unidos. Esse caso ilustra como a criação de alternativas para captação de recursos dificulta a atribuição de competências e responsabilidades entre os reguladores.
A divisão em dois eixos regulatórios oferece um potencial para lidar com o avanço de novos produtos e serviços financeiros. No entanto, como em qualquer estrutura regulatória, a eficácia do modelo dependerá da qualidade dos reguladores que o operam, motivo pelo qual a demanda por recursos humanos e financeiros necessita ser suprida. Sem um regulador fortalecido e atento às novas, mas antigas, práticas, há um risco de surgimento de vulnerabilidades sistêmicas que comprometam a estabilidade financeira.
Nenhuma arquitetura regulatória é milagrosa ou infalível. Embora o histórico brasileiro revele uma inclinação por soluções providenciais, cabe ao Ministério da Fazenda resistir à tentação de enxergar o modelo Twin Peaks como um remédio milagroso para os desafios do sistema financeiro.
Se a série homônima de David Lynch é reverenciada por suas incógnitas e enredos labirínticos, o Twin Peaks no Brasil precisa tomar um rumo distinto: ser igualmente engenhoso e inteligente, mas prezar por contornos e desfechos claros e inteligíveis. Esperamos que ao menos um terço da genialidade de Lynch esteja disponível à equipe do Ministério da Fazenda responsável pela reforma da regulação financeira.
As opiniões expressas neste artigo são de exclusiva responsabilidade do(a) autor(a) e não representam, necessariamente, a posição da Gazeta Arcadas sobre o tema. Somos um veículo plural, composto por pessoas com diferentes perspectivas políticas, e prezamos pelo respeito à diversidade e à democracia.
Texto revisado e editado por Ricardo Bianco.
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